domingo, 21 de março de 2010

Van Gogh na P2

Excertos de uma reportagem excelente
de Alexandra Lucas Coelho


Hoje visto como o fundador da arte moderna, Vincent Van Gogh morreu a achar que era um fracasso.

Durante 15 anos, peritos (um trio do Museu Van Gogh de Amesterdão, Leo Jansen, Hans Luijten e Nienke Bakker)prepararam uma monumental edição anotada, incluindo reproduções das cartas originais, muitas delas com desenhos.

Tudo isto foi recentemente publicado em seis volumes (com 4300 ilustrações, novas transcrições, novas traduções e cartas até agora desconhecidas), e há uma minuciosa extensão on-line: em www.vangoghletters.org estão disponíveis gratuitamente as 902 cartas da correspondência sobrevivente, nas línguas em que foram escritas (sobretudo holandês e francês) e em tradução para inglês.

"Nenhum outro artista escreveu tão extensamente e em detalhe sobre a sua arte", diz no catálogo Nicholas Grimshaw, director da Royal Academy. "O Van Gogh que emerge daqui é muito diferente do génio louco do mito popular. Ao contrário, descobrimos um homem reflexivo, altamente cultivado, com métodos de trabalho sistemáticos e estratégias artísticas cuidadosamente planeadas."

Sendo ao mesmo tempo papel de desenho, meio de focar ideias e monólogo interior, a correspondência é a "ponte entre o homem e a sua arte", dizem os três holandeses. Revela uma personalidade com grande coesão, "enérgica e activa, de convicções fortes, cuja vida era dominada pelo crescimento pessoal e a necessidade de tornar o seu talento útil, o que o levou a exigir o máximo de si próprio", com entusiasmo e devoção obsessiva.

Para perceber a dimensão deste esforço, vale a pena recordar que Vincent Van Gogh é um autodidacta.

Nascido em 1853, filho de um pastor protestante e sobrinho de um negociante de arte, foi encaminhado aos 16 anos como aprendiz para a firma de arte Goupil & Cie, em Haia, na Holanda (tal como aconteceria depois com o seu irmão Theo, quatro anos mais novo). Já falava inglês e francês, além de holandês, e as estadias em Londres e Paris, onde a Goupil tinha escritórios, ajudaram a torná-lo fluente. Ao convívio constante com originais e reproduções juntaram-se visitas aos museus franceses, ingleses e holandeses, o que originou nele todo um arquivo mental de imagens. Vincent estava assim pronto para comprar e vender arte, a vida confortável que os pais lhe tinham preparado.

Mas a inquietação transbordou cedo. Queria chegar aos pobres, aos operários, aos lavradores, aos mineiros. Educado na Bíblia, pensou primeiro tornar-se evangelista. Depois cortou com a igreja e com a "cultura burguesa e clerical, que achava "jesuítica" e hipócrita". E aos 27 anos, decidiu tornar-se artista, com a ambição última de "confortar as pessoas". A sua arte seria uma "arte para o povo", aquela que as pessoas mais simples pendurariam na parede de sua casa.
Van Gogh acreditava que os homens estão destinados a grandes coisas, e viveu para cumprir isso. A sua ambição era retratar a realidade, não na aparência exterior, mas fazendo vir ao de cima a sua essência, tal como ele a captava.

"Nas figuras humanas como nas paisagens, gostava de expressar não algo sentimentalmente melancólico mas profunda dor", escreveu numa das cartas. "Quero chegar ao ponto em que as pessoas digam do meu trabalho que aquele homem sente profundamente, e sente subtilmente."



Pintar seria assim um meio de expressão pessoal, mas além das emoções pessoais, como se o artista escavasse em si as mais profundas vibrações dos homens e da natureza. Não as coisas como elas são, mas as coisas como o artista as sente.

"Van Gogh, que entusiasticamente subscrevia a ideia por trás da questão retórica de Courbet "Quem já viu anjos!", era essencialmente um inveterado realista", escrevem no catálogo os três peritos holandeses. "A arte não precisava de ser uma repetição fotográfica da realidade, mas a verdade e a autenticidade eram os seus ingredientes essenciais."

No extremo, era o artista que dava verdade à realidade - "focar atenção numa árvore e não descansar até haver alguma vida nela", escreveu Van Gogh numa carta.

E uma arte duradoura pedia artistas maiores que a vida.

O pintor do futuro, acreditava ele, seria um colorista, dando através da cor cada emoção. A função da cor seria essa, e não ser fotograficamente realista. Tal como a pintura do futuro seria o retrato, a que a cor daria intemporalidade e universalidade.

A fotografia não lhe interessava. Fala dela nas cartas como um retrato unidimensional da aparência.
Em contrapartida, a realidade era infinita. De nada valeram os incentivos de Gauguin para que trabalhasse a imaginação, a memória, a fantasia.
Van Gogh não precisou disso.

http://jornal.publico.pt/pages/section.aspx?id=63900&d=20-03-2010

Sem comentários:

Enviar um comentário