segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Física Quântica e Filosofia

É um gato? É um vírus? É uma experiência quântica!

Por Ana Gerschenfeld – PÚBLICO – 25/10/2009



Em 1935, o físico austríaco Erwin Schroedinger imaginou uma experiência conceptual, protagonizada por um gato, para mostrar quão bizarra era a nova mecânica quântica, quando transposta para os objectos quotidianos. Agora, um grupo de cientistas diz que é possível fazer realmente a experiência - com um vírus.

A física quântica é uma verdadeira colecção de bizarrias que desafiam as nossas mais íntimas intuições. À escala dos átomos e das partículas subatómicas, tudo é diferente, tudo fica "desfocado", por assim dizer. Um electrão não é como uma bola de ténis, porque, segundo as leis da mecânica quântica, pode estar em vários sítios diferentes ao mesmo tempo - o que não acontece com a bola de ténis.
Uma pergunta que irrita e fascina há décadas muitos físicos é a seguinte: se é verdade (e ninguém duvida) que os objectos quotidianos são feitos de triliões de partículas quânticas, por que é que as leis da física quântica não se aplicam também a esses objectos? Por que é que não podemos, parafraseando a revistaNew Scientist, estar ao mesmo tempo no jardim a cortar a relva e no supermercado a fazer as compras?
Uma das mais famosas peças da galeria de estranhas propriedades não diz respeito às partículas infinitesimais, mas a um gato... O gato é o protagonista de uma experiência mental, uma pura abstracção, imaginada em 1935 por um dos pioneiros da mecânica quântica, Erwin Schroedinger, precisamente para ilustrar o lado bizarro desta área da física.
Oitenta e poucos anos mais tarde, uma equipa liderada pelos físicos espanhóis Oriol Romero-Isart e Ignacio Cirac, do Instituto Max Planck de Garching, na Alemanha, anunciou agora que quer trocar o gato por um vírus e mostrar que é mesmo possível obrigar um organismo vivo ou quase vivo (se não um gato, pelo menos um vírus) a assumir, em simultâneo, dois estados físicos diferentes. Por enquanto, apenas publicaram a descrição da experiência que tencionam fazer para o conseguir no arXiv.org (um sitede pré-publicação de artigos na área da física). Mas o P2 soube entretanto, junto de Ignacio Cirac, que já submeteram o seu trabalho para publicação na revistaNature.
Paradoxo de Schroedinger
Lá vai então a história do gato. Dentro de uma caixa blindada e opaca, lá está ele. Ao pé, mas inacessíveis ao gato, há um frasco cheio de gás de cianeto, uma amostra de material radioactivo, um martelo e um detector de radiação (estes dois últimos objectos ligados um ao outro por um circuito eléctrico). O material radioactivo tem uma probabilidade de 50 por cento de emitir uma partícula de radiação ao longo de uma hora - e a mesma probabilidade de não emitir nada. Passado esse tempo, se a partícula tiver sido emitida, ela terá sido detectada pelo detector, que terá accionado o martelo, que terá esmagado o frasco, que terá libertado o veneno, que terá morto o gato. Se não tiver sido emitida, nada terá acontecido ao animalzinho de estimação, que continuará vivo.
Só que, como o material radioactivo se rege pelas leis da mecânica quântica, ele pode ter emitido a radiação e não a ter emitido, dando origem ao que os físicos chamam uma "sobreposição" desses dois estados. E como os estados de saúde possíveis do gato estão intrinsecamente ligados a esse fenómeno quântico pelo "mecanismo diabólico" da experiência (a expressão é do próprio Schroedinger), o gato também se encontra, simultaneamente, em dois estados radicalmente diferentes: está vivo e morto ao mesmo tempo.
Um pequeno parêntese: é precisamente a possibilidade de sobreposição de estados que está na base de conceitos como o do computador quântico, que, a existir, seria muitíssimo mais poderoso do que qualquer supercomputador convencional. E, a este propósito, diga-se que Ignacio Cirac é considerado um físico brilhante neste domínio. Uma prova entre muitas outras: recebeu esta semana, juntamente com outros dois físicos, a Medalha Benjamin Franklin da Física 2010 - um dos mais prestigiados prémios do mundo - "pela sua proposta teórica e realização experimental do primeiro dispositivo que faz operações elementares de lógica computacional utilizando as propriedades quânticas dos átomos individuais".
Voltando ao gato, a questão é que Schroedinger quis, através desse paradoxo, criticar a chamada "interpretação de Copenhaga" da mecânica quântica (elaborada, em 1927, por outros dois pioneiros da teoria, Niels Bohr e Werner Heisenberg), que estipula que o mundo das partículas é governado essencialmente pelas probabilidades. Segundo esta interpretação, o que acontece é que, mal a caixa é aberta (ou seja, mal uma observação, ou medição do sistema é efectuada por alguém), os estados quânticos simultâneos "entram em colapso", deixando subsistir apenas um dos dois estados possíveis para a fonte radioactiva e para o gato - morto ou vivo. E tudo volta assim à normalidade. Mas Schroedinger, tal como Albert Einstein, não acreditava que o mundo fosse totalmente indeterminista, aleatório, probabilista; pensava, pelo contrário, que o que se passava com a teoria é que ela não descrevia totalmente o mundo físico, que era incompleta e, por isso, não conseguia conciliar as escalas macroscópica e microscópica do mundo físico.
Hoje em dia, apesar deste tipo de dificuldades, a interpretação de Copenhaga continua a ser a mais largamente aceite pela comunidade dos especialistas. Mas existem também propostas alternativas (que são, contudo, ainda mais parecidas com ficção científica...). Uma delas é a chamada many-worlds interpretation (proposta pelo físico norte-americano Hugh Everett em 1957), que especula que o gato bem pode estar morto e vivo ao mesmo tempo - mas em universos paralelos que não têm qualquer hipótese de comunicar entre eles. No nosso universo, o gato estará por exemplo vivo (ou morto), mas existe, fora do nosso alcance, um outro universo onde se verifica a situação contrária.
"Essa interpretação [de Copenhaga] da mecânica quântica é a comummente aceite", diz-nos por email Carlos Fiolhais, físico da Universidade de Coimbra, "mas levanta algumas dificuldades conceptuais. A maior é talvez que, sendo o estado quântico, em geral, uma sobreposição ou mistura de estados puros (...), é a interacção com o observador que determina o resultado da medida. Este "colapso" da função de onda, esta determinação de um mundo indeterminado feita pelo observador, parece prejudicar a existência de um mundo objectivo independente do observador. O paradoxo do gato de Schroedinger surge neste contexto. A questão é: não será absurdo que seja o observador que, quando abre a caixa para ver o gato, o mata?" Ou, dito por outras palavras, será concebível que a realidade seja tributária da consciência humana?
Uma "ratoeira quântica"
Considerações filosóficas à parte, a experiência à qual Cirac, Romero-Isart e colegas tencionam submeter um vírus é a seguinte, como explicam no seu artigo, que se encontra actualmente acessível através do endereço http://arxiv.org/abs/0909.1469. Primeiro, graças ao campo electromagnético criado por um laser - uma "ratoeira quântica", diz Carlos Fiolhais - vão aprisionar um vírus no vácuo. A seguir, com um segundo laser, vão reduzir os movimentos do vírus até o fazer atingir o seu estado de energia mais baixo - ou seja, até ele parar de se mexer quase por completo. E por último, vão alvejar o vírus com um fotão (uma partícula de luz). Como o fotão é uma partícula quântica (e como tal, pode ao mesmo tempo atravessar o vírus sem surtir qualquer efeito e ser reflectida por ele, imprimindo-lhe um movimento adicional), o dispositivo deverá conseguir colocar o vírus numa superposição quântica de dois estados de movimento.
"Há coisas impossíveis, mas esta não parece ser uma delas", explica-nos ainda Fiolhais. "[Mas] os autores, sabendo que não conseguem "caçar" com gato, "caçam" com um vírus e, em vez de falarem do vírus vivo ou morto, falam de vários estados de vibração do vírus, isto é, querem pôr o vírus a abanar tal como uma corda musical."
Existem vírus capazes de resistir a um tal tratamento? Sim, respondem os autores desta ainda hipotética experiência: por exemplo, os vírus da gripe. Possuem as dimensões adequadas (uma centena de milionésimos de milímetro) e têm as propriedades físicas certas para se comportar de forma quântica: entre outras coisas, não conduzem a electricidade e conseguem resistir ao vácuo durante semanas. O vírus do mosaico do tabaco é um outro candidato. Com mais arrojo ainda, os autores referem mesmo a possibilidade de se vir a utilizar uns bichinhos bem maiores: os tardígrados, uns minúsculos animais, com 1,5 mm de comprimento, que vivem nos musgos, nos locais húmidos, e que também são capazes de sobreviver no vácuo.
Vivo ou não?
Há quem ache que os vírus não são realmente seres vivos e que, portanto, o sucesso da experiência com um vírus não significará que foi possível criar uma sobreposição quântica num ser vivo, ao contrário do que anuncia o título do artigo. "Partículas, átomos, moléculas e grandes moléculas têm-se portado como a mecânica quântica diz que se devem portar", explica-nos Fiolhais. Inclusivamente, frisa, foram feitas experiências de sobreposição quântica com moléculas de futeboleno (carbono 60), que são objectos nanoscópicos tais como os vírus. Ao fim e ao cabo, salienta este cientista, "um vírus não passa de uma molécula grande e complexa" e "é discutível se se lhe deve chamar um organismo vivo". "Digamos que está na transição entre o não-vivo e o vivo."
Martin Plenio, físico do Imperial College de Londres, citado pelaNature numa notícia acerca desta pré-publicação, é da mesma opinião: "Estou totalmente convencido que os vírus se comportariam exactamente da mesma forma que as moléculas inorgânicas."
O que não impede, segundo ele, que a experiência seja interessante, na medida em que pode "ajudar os físicos a determinar onde acaba o mundo quântico e onde começa o nosso mundo macroscópico".
"A questão é precisamente até onde é que essas leis [quânticas] são válidas", diz-nos por seu lado, também via email, Yasser Omar, especialista de física quântica da Universidade Técnica de Lisboa. "Recentemente, tem havido um progresso notável e tem vindo a descobrir-se que os efeitos quânticos sobrevivem em objectos muito maiores do que se imaginava, ainda que à escala nanoscópica." E não só. "Foi demonstrada a existência de efeitos quânticos no processo de fotossíntese", acrescenta Omar, "em moléculas grandes, à temperatura ambiente... e em sistemas vivos". "Trata-se de resultados muito recentes, que vêm mais uma vez empurrar a fronteira do mundo quântico (...). O artigo do Cirac é mais uma contribuição nesta direcção (...)."
E acrescenta, com um entusiasmo palpável: "Criar uma sobreposição quântica num ser vivo, como um vírus, a temperatura ambiente, seria um resultado de grande espectacularidade, que demonstraria que a fronteira entre a física quântica e a física clássica está muito para além do que se pensava. (...) Não deixaria de ser uma surpresa para a esmagadora maioria dos físicos e seria certamente um resultado candidato ao Prémio Nobel. Mas o mais interessante é que, se tais resultados forem observados, abrem-se desafios extremamente interessantes para os físicos resolverem. Como, por exemplo, explicar como é que os sistemas quânticos são robustos [não são perturbados] ao ruído exterior - o que poderá ser uma contribuição crucial para a construção de um computador quântico -, e descobrir até onde se podem observar efeitos quânticos, em particular em sistemas ou seres vivos maiores. A priori, poderá não haver nenhuma limitação fundamental à realização deste tipo de experiências com objectos maiores."
Questões filosóficas
Concluem os autores do artigo: "Esperamos que as experiências propostas sejam um primeiro passo para abordar experimentalmente questões fundamentais, tais como o papel da vida e da consciência na mecânica quântica - e até as implicações nas nossas interpretações da mecânica quântica." E, numa versão anterior do texto (que esteveonlineaté há uns dias), também escreviam que, a confirmar-se que um ser vivo pode assumir sobreposições quânticas, poderia mesmo haver maneiras de testar a validade das diferentes interpretações da teoria, nomeadamente a de Copenhaga e a dos multiversos (many-worlds), já aqui referidas.
Carlos Fiolhais mostra-se céptico. "A confusão que podemos ter sobre o comportamento de objectos nanoscópicos", diz-nos, "é natural, pois não estamos habituados ao comportamento do micromundo. (...) "[Mas] não penso que a experiência do vírus possa iluminar questões filosóficas do tipo das que são levantadas pela teoria quântica."
Até porque "o paradoxo [de Schroedinger] pode ser ultrapassado dizendo que falamos de probabilidade de gato morto e probabilidade de gato vivo", explica ainda, "e que, se tivermos muitas caixas com gatos, encontraremos uns vivos e outros mortos na proporção indicada pelas probabilidades". "Esta é uma maneira satisfatória, quanto a mim, de ver o problema [e evita] algumas complicações que vêm da interpretação de Copenhaga. Não é um gato que está meio vivo, meio morto como umzombie, mas um conjunto de gatos que estarão uns vivos e outros mortos. E, quando eu digo que encontramos gatos vivos e mortos, não estou a dizer que o olhar os mata..." E nós arriscamo-nos a acrescentar: também não significa que pertencem a universos paralelos...
"Eu diria", prossegue Fiolhais, "que há um contínuo entre o micromundo das partículas, átomos e moléculas e o nosso macromundo. A teoria quântica não é eterna, poderá um dia ser ultrapassada por outra que a englobe, mas duvido que possa ser ultrapassada por experiências do tipo da que ora foi proposta... O mais natural é que se confirmem as previsões da teoria quântica e, assim, não se avance muito. Para avançar ter-se-ia de encontrar uma falha de previsão, algo que nem Schroedinger, nem Einstein, nem ninguém depois deles conseguiu. Apesar de todas as dificuldades conceptuais, a teoria quântica está bem e recomenda-se."

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