terça-feira, 13 de julho de 2010

Neurociências, Humanidade e Filosofia



"As neurociências reforçam a visão humanista"

Para este conhecido cientista francês, quanto melhor for o nosso conhecimento do cérebro humano através das neurociências, maior será a nossa abertura em relação à espécie humana. Já lá vão os tempos em que afirmar este tipo de coisas era anátema. Por Ana Gerschenfeld (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia)

Nos anos 1980, Jean-Pierre Changeux, especialista de neurobiologia molecular hoje com 74 anos, escreveu um livro, O Homem Neuronal, que se tornou um best-seller mundial, onde desmontava a noção, em voga na altura, de que o cérebro, com os seus impulsos químicos e eléctricos, era uma simples máquina - um computador. Para ele, perguntas como "O que é ser humano? O que é a consciência? O que é o pensamento? A verdade? A beleza? exigiam respostas menos mecanicistas, mais "humanas", mais multidisciplinares - exigiam a construção de uma ponte entre o puramente neuronal e o nosso universo cognitivo, mental.

O livro gerou controvérsia - o que, volvidas várias décadas e muitos avanços das neurociências e das ciências cognitivas em geral, parece quase incompreensível. Hoje, sabemos quão importantes são as emoções - que os computadores claramente não possuem - para um normal funcionamento da mente humana.

Changeux também se interessou sempre pelas questões éticas ligadas às neurociências. Afirma que é possível construir "uma neurociência da pessoa humana", para retomar uma parte do título da conferência que proferiu em Lisboa, há umas semanas, no âmbito de um colóquio franco-português sobre ética e neurociências, promovido pela Embaixada de França e o Instituto Gulbenkian de Ciência. E espera que um dia os seres humanos consigam viver em maior harmonia entre si - uma visão que, como confessou ao P2, pode pecar por optimismo...

No passado, temas como o sentido moral ou a espiritualidade não eram objecto de estudo das neurociências. O que é que levou a uma mudança tão radical?

A mudança foi fruto de uma longa evolução. Nos anos 1970, os progressos da biologia molecular permitiram uma primeira revolução ao federar áreas de estudo tão diversas como a psicologia, a sociologia, a anatomia cerebral, a fisiologia cerebral, a farmacologia, a genética, etc. Verificou-se uma espécie de enraizamento da fisiologia nervosa na biologia molecular e, ao mesmo tempo, foi possível relacionar comportamentos com estados fisiológicos de conjuntos de neurónios. Começou-se pelo estudo de sistemas simples, como a aplísia [uma lesma] ou o caracol e, progressivamente, passou-se para o ratinho e para sistemas mais complexos e para o ser humano. Isso aconteceu graças aos avanços das ciências cognitivas - com estudos de psicologia da percepção, da linguagem, do acesso à consciência - e graças à sequenciação do genoma humano, que permitiu relacionar a variabilidade genética com a predisposição para doenças neurológicas e psiquiátricas.

Paralelamente, as tecnologias de visualização permitiram estabelecer relações entre a actividade de conjuntos de neurónios no nosso cérebro e estados psicológicos - e perceber a importância de certos traços do cérebro humano que são geneticamente determinados. Houve assim aspectos da psicologia, da antropologia, da cultura, que passaram a ter a ver com as neurociências.

Começam a existir modelos e dados sobre a internalização da cultura e a sua produção - isto é, sobre a forma como os circuitos cerebrais se modificam ao longo do desenvolvimento, da aprendizagem da oralidade e da escrita, do estabelecimento de regras de conduta moral, da criação artística.

Estão a surgir novas sínteses e penso que, no que respeita às relações das neurociências com a ética, a estética, a epistemologia, vislumbram-se programas de investigação que irão desenvolver-se nos próximos anos. Já não se trata de filosofia - sem querer criticar a filosofia, que acho que continua a ser necessária. Já não estamos no domínio do discurso, mas no domínio da experimentação e da pesquisa de dados objectivos.

Há uns anos, tê-lo-iam acusado de reducionismo. Hoje, já não. Porquê?

Fui durante muito tempo alvo de críticas dessa natureza. A palavra reducionismo tinha uma conotação muito pejorativa. Havia quem pensasse que eu estava a incluir neste campo de pesquisa tudo o que era do domínio cultural. Através de vários livros, tentei mostrar que não era nada disso. O Homem Neuronal, que escrevi em 1983 e que foi traduzido para inglês em 1985 [e publicado em Portugal pela Dom Quixote no mesmo ano], provocou um choque porque era, a meu ver, a primeira síntese das disciplinas que vieram integrar as neurociências. Foi uma primeira tomada de consciência de que uma nova ciência estava a emergir. Acho que o meu livro foi difícil de aceitar porque, pelo menos nas nossas sociedades ocidentais, existe uma visão dualista do corpo e da mente. Mas sempre houve filosofias monistas, desde os atomistas da Antiguidade até Spinoza, Diderot e muitos outros.

Tem havido sem dúvida uma evolução da reflexão, talvez a começar pelos filósofos e os media, e uma maior aproximação do público ao mundo das neurociências.

Os media?

Sim, os media tiveram um papel importante. Vimos aparecer as palavras "neurónio" e "sinapse" em jornais de grande tiragem. Mas, pelo menos em França, o reflexo dualista continua presente. Não me parece que o público, na sua totalidade, tenha ficado convencido com o nosso ponto de vista.

Somos o produto dos nossos genes e, ao mesmo tempo, a nossa personalidade depende da arquitectura dos nossos circuitos neuronais, moldados pela nossa história pessoal.

É o velho debate do inato e do adquirido que ressurge aqui?

Os genes conferem aos seres humanos traços comuns que assinalam a nossa humanidade. Mas os genomas do ratinho, do chimpanzé e do homem são muito semelhantes e, por enquanto, não sabemos realmente quais são as diferenças fundamentais que fazem com que o nosso cérebro tenha evoluído para uma maior complexidade do que os cérebros dessas outras espécies.

Para mim, de longe o factor mais importante desta evolução não linear é que o cérebro humano continua [ao contrário do que se pensava no passado] a desenvolver-se até aos 15 ou 20 anos de idade e é ao longo desse desenvolvimento que a conectividade entre as células nervosas se estabelece - para além de que pode também haver produção de novos neurónios. Assim, à base genética vem juntar-se uma profusão epigenética que participa no estabelecimento da conectividade neuronal.

No fundo, isto faz com que a problemática do que é inato e do que é adquirido esteja ultrapassada. Há, praticamente desde o início, na maneira como os genes se vão expressar para compor a arquitectura do nosso cérebro, fenómenos epigenéticos. E a consequência disso é que cada indivíduo é diferente dos outros, tanto no plano genético como, sobretudo, no plano epigenético. A vida de cada um difere da dos outros e gera-se assim uma singularidade da pessoa humana.

Mas isso deixa espaço para o livre arbítrio?

A questão do livre arbítrio é uma questão filosófica e não me sinto habilitado a falar dela. Certos filósofos, como Spinoza, negam a existência do livre arbítrio. Para Spinoza os homens pensam que são livres na medida em que ignoram as causas que os determinam.

O que penso que possuímos é o que eu chamaria um "espaço de trabalho neuronal consciente" - arquitecturas neuronais que permitem a existência da consciência, onde se produz uma espécie de globalização da visão do mundo, no qual somos capazes de simular acções sobre o mundo. Quando sou entrevistado, posso responder de várias maneiras a uma pergunta e procuro a mais adequada através de mecanismos de selecção. Quando faço isso - e não sei se para mim isso constitui uma definição da liberdade -, essas escolhas são, para dar razão a Spinoza, determinadas pela minha experiência passada, mas tenho, apesar de tudo, a possibilidade de escolha.

Acho que esta visão da consciência e da produção de estados mentais não está em contradição com os filósofos que consideram que existe uma certa liberdade nos nossos comportamentos. Mas, pessoalmente, inclino-me muito mais para a visão de Spinoza. Penso que temos a possibilidade de escolher, mas as nossas escolhas são, em última análise, determinadas pelas nossas predisposições e pela nossa vivência.

A aceitação desse ponto de vista pode traduzir-se numa maior tolerância para com os outros?

Quanto melhor for o nosso conhecimento do cérebro humano, maior será a nossa abertura em relação à espécie humana e à sua diversidade e melhor conseguiremos compreender o que torna os indivíduos diferentes, as diferenças entre as reacções dos indivíduos numa dada situação e o que cria antagonismos entre indivíduos nos grupos humanos e entre grupos humanos.

A noção de epigénese é aqui fundamental, porque há obviamente um aspecto circunstancial no facto de uma pessoa nascer numa família lusófona católica ou numa família chinesa confucionista. E o ambiente familiar, escolar e social vão fazer surgir, na nossa organização neuronal, o que eu chamo "circuitos culturais". O exemplo mais típico são os circuitos envolvidos na leitura e na escrita - que foram, aliás, bem estudados em Portugal por Alexandre Castro-Caldas, que mostrou que existiam diferenças notáveis no cérebro de pessoas iletradas em relação ao de pessoas que sabem ler e escrever.

Essas marcas culturais cerebrais, que são reais, são muito pouco reversíveis. Aprendemos uma língua em criança e, se mudarmos de ambiente linguístico, podemos aprender uma segunda língua. Mas subsiste um sotaque, que não é senão o vestígio, muito profundo, dos primeiros circuitos culturais que se formaram no nosso cérebro aquando da nossa primeira aprendizagem da língua oral.

As bases neuronais das diferenças culturais apenas são reversíveis na geração seguinte, através da educação. E é por isso que é muito importante que a educação seja laica, permitindo a cada um ter os seus sistemas linguísticos, de crenças, etc., mas, ao mesmo tempo, fazendo com que o outro apenas seja diferente de nós ao nível de uma espécie de tradição familiar ou da sua experiência pessoal. Isso torna-nos muito mais compreensivos e tolerantes, uma vez que o outro não é responsável por diferenças que foram criadas pelas circunstâncias da sua vida. Neste aspecto, acho que as neurociências reforçam a visão humanista.

A utilização de substâncias que permitem melhorar o desempenho mental, do tipo modafinil, ritalina, etc., tem-se generalizado. Acha que se trata de doping?

Quando eu era presidente do comité de ética francês, debateu-se muito a questão do doping no desporto, e não apenas no plano do desempenho muscular, mas também ao nível da motivação, das funções cerebrais. E era curioso ouvir os médicos da medicina do desporto dizer que, quando um atleta tem dificuldade em continuar o treino, ou em manter a sua performance, é legítimo fazer o necessário para que recupere o seu nível de desempenho. Isso justifica de certa maneira o doping. O comité de ética adoptou uma posição muito firme, vincando que o primeiro acto terapêutico nesses casos é fazer com que o atleta pare de tentar ir para além das suas forças. No caso da performance cerebral, é um pouco a mesma coisa. A minha posição nesta matéria é clara: ou a pessoa sofre de dificuldades reais - por exemplo, no caso de uma doença de Alzheimer ainda no início - e temos o dever de a ajudar a ultrapassar e controlar os seus problemas; ou a pessoa funciona normalmente - e o medicamento é uma droga, é doping.

Há quem pretenda utilizar as neurociências para fazer neuromarketing, influenciando as escolhas das pessoas. O que pensa disso?

É uma corrupção do conhecimento. Não é o objectivo das neurociências. É uma situação que se pode verificar e que exige uma vigilância ética, para que os avanços do conhecimento não sejam desviados do seu objectivo. O objectivo da ciência é ajudar os seres humanos a ter uma vida mais harmoniosa, mais agradável, de maior qualidade. Infelizmente, a ciência pode por vezes ser utilizada para discriminar, para controlar artificialmente os comportamentos. Nós, cientistas, temos o dever de o evitar.

Vai ser possível um dia ler o pensamento? Vamos conseguir conhecer as decisões das pessoas antes de elas as tomarem?

Sim. Já é possível identificar as intenções motoras de alguém antes de essa intenção se traduzir num gesto motor. Da mesma maneira, podemos tentar identificar "assinaturas" neuronais de conceitos particulares. É uma possibilidade que está a ser testada. Não me parece impossível identificar o tipo de representação que cada um de nós tem na sua subjectividade, por assim dizer. Também a este nível é preciso desenvolver uma reflexão ética em torno do respeito da vida privada de outrem. Só podemos fazer este tipo de experiências com o consentimento da pessoa e o problema é o de saber se será um dia possível fazer este tipo de "leitura" sem consultar a pessoa visada. Isso colocaria um grave problema ético.

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