terça-feira, 18 de maio de 2010

Espaço Público Grego e Espaço Público Moderno

“No contexto grego clássico, o que hoje se chama «espaço público» remetia então para a praça pública, a ágora, ou seja, o lugar concreto onde os cidadãos devem reunir-se para debater sobre assuntos que dizem respeito ao governo da cidade. Retrospectivamente, alguns pensadores contemporâneos, tais como H. G. Gadamer, mas em especial Hannah Arendt, retomaram o conceito aristotélico da Política, pondo em relevo as oposições entre polis e oikos, entre o político e o económico e, de maneira correlativa, entre o público e o privado, a liberdade e a necessidade, o poder e a dominação, a «prática» (praxis) e o «técnico» (techné).
Na apresentação que se costuma fazer hoje em dia, a polis grega é esse espaço político cujo carácter essencialmente público a distingue da oikos, esfera privada da domesticidade e, por extensão, do económico. De um modo geral, a ordem política da Cidade deve estar autonomi¬zada relativamente ao conjunto das actividades sociais, redes de interesses governados por um pacto, que configuram para nós uma espécie de sociedade civil. Política e esfera pública coinci¬dem rigorosamente. À política corresponde a praxis, ou seja, a acção comum, concertada ten¬dente aos melhores fins da Cidade ao concluir um diálogo: lexis. (…)
Só a esfera privada doméstica, e não o espaço público, admite a dominação: é o poder que o dono da casa exerce exclusivamente sobre as mulheres, as crianças, os escravos e, em geral, em toda a esfera doméstica onde se produzem os processos biológicos, em especial «privados»: nas¬cimento, morte, reprodução, subsistência, onde quer que reine a «necessidade». Pelo contrário, a esfera pública política é idealizada como um reino da liberdade (no sentido dos antigos), uma liberdade que se expressa num direito igual, para todos os cidadãos, a participar directamente nos assuntos públicos.
Relativamente ao espaço público moderno, pode dizer-se que é uma criação da Ilustração. Com perspectivas filosóficas e políticas muito diferentes, J. Habermas e R. Koselleck trataram de reconstruir a sua origem e o seu desenvolvimento até aos nossos dias. No início, o «espaço público burguês» talvez correspondesse à institucionalização de uma crítica que empregava os meios da moral para reduzir ou «racionalizar» a dominação política. No contexto da época, isto significava «impugnar o princípio absolutista». Este expressa-se, em particular, na fórmula de Hobbes: Auctoritas non veritas facit 1egem [A autoridade e não a verdade dita a lei]. A Ilustração consagra a sua inversão pura e simples: A verdade e não a autoridade dita a lei.
Na sua reconstrução, R. Koselleck explica como, desde o século XVI, na Europa Ocidental, e ante a ameaça de perturbação que representavam as Guerras da Religião, a necessidade de manter uma coesão social pôde justificar a instituição tipicamente moderna de uma «esfera privada» da opinião e da crença: a consciência individual deve ser, por assim dizer, «privatizada» na qualidade de «foro interno» sacrossanto, enquanto que o domínio público, ideologicamente neutro, é dirigido por uma «razão» nova, distinta da «opinião»: a razão de Estado. No campo da doutrina, Hobbes é quem con¬sagra a separação do público e do privado, da razão e da opinião, da política e da moral.
Não obstante, o domínio público não fora entregue a um espaço público: estava antes confinado a esse espaço privado um tanto paradoxal da «razão de Estado» e do «segredo de Estado». O que cria a abertura da Publicidade e opera a transubstanciação do domínio público em espaço público é a força exterior da crítica. O impulso não vem de «cima». Vem de «baixo», quando as pessoas particulares, reunidas nos salões, nos cafés e nos clubes constituem as primeiras «esferas públicas» ¬burguesas para trocar as suas experiências. A autonomia privada da consciência, individual, núcleo do espaço público moderno, adquire a sua própria força da crítica. Protegida pela imunidade do foro interno, converte-se em pequeno tribunal, em instância moral fora da qual os indivíduos pedirão razões à política, primeiramente de forma encoberta e depois de modo aberto. (…)
Apesar das suas diferenças, os dois modelos mencionados - clássico e moderno - do espaço público político aceitam um princípio argumentativo; remetem ambos para um contexto de ilustração em sentido amplo, favorável ao mesmo .tempo ao desenvolvimento da democracia e à difusão da filosofia. Mas, ao que parece, só no contexto da modernidade, a ilustração pôde desenvolver uma espécie de «dialéctica», durante a qual o espaço público se transformou pro¬fundamente até ao estado social de hoje, sem romper radicalmente com o seu princípio funda¬dor: a argumentação pública e a discussão racional assentes sobre a base da liberdade formal e da igualdade de direitos. (…)”
].-M. Ferry, “Las transformaciones de la publicidad política”, in EI Nuevo Espaço Público, Barcelona, Editorial Gedisa, 1995, pp.13-16.

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