O Expresso vai disponibilizar, já
a partir do dia 16 de janeiro, o livro “Cultura — Tudo o Que É Preciso Saber”,
do alemão Dietrich Schwanitz. Dividido em seis volumes, a serem distribuídos
gratuitamente por todos os leitores do Expresso, trata-se de um projeto
ambicioso: resumir a cultura ocidental em 647 páginas, sem grandes floreados e
percorrendo as suas várias vertentes — histórica, literária, artística,
filosófica. A ideia é ajudar o leitor a construir uma noção de “cultura geral”
e a orientar-se na infinidade de caminhos possíveis para lá chegar, com
conselhos práticos sobre livros e leituras. Fala-se de cosmogonias, de Homero,
da Bíblia, da Idade Média, da modernidade, de revoluções, guerras e democracia.
Da evolução das artes e da escrita, das grandes obras que servem de chão ao
nosso presente. O primeiro volume desta coleção intitula-se “Da Antiguidade
Clássica à Idade Média” e tem introdução de Eduardo Lourenço. Neste texto, o
professor leva-nos a compreender por que razão um livro destes é necessário
logo hoje, o tempo da suprema distração, do “presente que a si mesmo se basta”
e das aparências que mascaram o real.
Cultura não pode ser uma luz que
ilumina uns quantos enquanto o resto permanece na sombra. Para Eduardo
Lourenço, a cultura é, antes, “o diálogo da humanidade consigo própria”. Porém,
esse diálogo está hoje a ser esvaziado em função de uma distração sublime, de
um olhar em frente que confunde com a realidade as sombras projetadas no fundo
da caverna. Sim, Platão é para aqui chamado. E Comte, Lévi-Strauss,
Kierkegaard. O professor prefaciou Schwanitz e imprimiu-lhe um tom mais
cauteloso. Afinal, de que falamos quando falamos de cultura?
O título do livro de Dietrich Schwanitz é “Cultura — Tudo o Que É
Preciso Saber”. O que é preciso para ser-se culto?
Seria melhor se fosse “tudo o que
convém saber”. Porque a cultura não tem o monopólio do que é preciso ou não
saber. Ela é o lugar onde se discute o sentido de tudo quanto somos capazes de
fazer. E, como tal, a cultura não é a resposta, é a questão. A questão que a
humanidade tem consigo própria. Antes dos gregos, civilizações mais arcaizantes
não tinham essa exigência autocrítica, de se discutirem a elas próprias. E nós,
enquanto herdeiros dos gregos, reservamos-lhe um lugar matricial. Nascemos de
uma cultura de diálogo, ou pelo menos essa era a nossa convicção no século XIX.
É por isso que o título do livro é importante: porque descobrimos que a cultura
também é aquilo que separa, que divide os homens entre cultos e não cultos.
Hoje, cada um pensa que a cultura é dele. Mas nada justifica esta pretensão de
que os outros estão numa espécie de sombra. Uma das pessoas mais lúcidas a
pensar sobre isto foi Claude Lévi-Strauss. Para ele, tudo é cultural. Porque o
homem é um ser falante e pensante.
A cultura é uma construção?
É uma construção que nunca esteve
ausente. E em vez de ser a maneira mais autocompreensiva de a humanidade se
entender e de entender tudo quanto faz, de ser uma leitura do mundo, está a
transformar-se numa espécie de luz imposta, tão ofuscante que acaba sendo
rejeitada. Por outro lado, cultura é também isso: a tentativa de separar o que
é sombra do que é luminoso, o aceitável do inaceitável.
Uma espécie de validador?
É uma espécie de diálogo, o da
humanidade consigo própria. Veja que, de alguns anos para cá, apareceu o
conceito de ‘contracultura’. Ou seja, uma parte da humanidade, particularmente
os jovens, exprime o que sente de uma forma diferente da chamada ‘cultura
culta’ — tradicional, herdada da Grécia e, no Renascimento, mitificada e
promovida a um ideal. Esta contracultura pode parece bárbara, mas é uma
cultura. Não podemos escapar ao cultural.
Hoje temos acesso a quase tudo. Somos mais cultos?
A cultura não tem um padrão. Não
há nada que meça o que é ou não cultural. Em todo o caso, o destino da
humanidade é o de distinguir sem cessar, e o ser humano é o ser da escolha. E o
que é cultura depende daquilo que somos, em termos individuais e coletivos. Não
há um paradigma, ‘uma’ cultura.
Porém, Dietrich Schwanitz tenta
defini-la, ao dizer que a cultura é “a compreensão da nossa civilização” ou “o
conhecimento que sabe avaliar-se a si mesmo”.
Penso que todas as grandes
culturas, e não só a ocidental — que a certa altura parecia uma exceção no meio
de culturas confrontadas com questões de sobrevivência vital — são um espaço de
ócio. A cultura nasceu quando os homens criaram uma resposta à coisa mais insuportável
de todas: o tédio. O tédio é um tempo sem matéria, uma matéria nula em que nada
se passa. Pascal disse que a infelicidade da humanidade é a incapacidade de
estar sozinha num quarto. É não se contentar com o que está à volta ou com as
coisas urgentes que a solicitam e que deveriam ocupá-la. A cultura é, assim, a
invenção contínua de respostas para a expulsão do não-sentido.
O autor dedica o livro aos que se sentem desiludidos com um
sistema educativo em crise e sem relação com a vida. Da educação advém a
cultura?
Essa espécie de música, de
lengalenga, sempre existiu. Mas houve um tempo em que a educação era um
privilégio de certas classes, e a distribuição do saber não era igualitária ou
codificada de forma a todos poderem participar. Isso modificou-se quando
Rousseau a colocou no centro da formação humana. A educação passa a ser o
espaço — e a prática — através do qual o homem se vive a si mesmo e se torna
exigente em relação ao que lhe é proposto como sendo evidências, que se podem
discutir e até transformar.
A cultura implica um passado e uma memória. Ter cultura não
significa sempre recuar?
Somos herdeiros de uma série de
discursos sobre nós próprios. E pouco a pouco ficou assente que há um caminho
real e outros subalternos, saberes de segunda ordem, que aparecem em relação
aos dominantes como qualquer coisa de inferior. Ora, a cultura verdadeira não é
secundarizante. Temos de evitar duas coisas: a apologia de um saber que, de
forma mitificada, se assume como o incontornável absoluto para os iniciados na
cultura; e a determinação do que seria um ‘mínimo vital’ na ordem da cultura,
ou seja, as migalhas distribuídas generosa e caritativamente ao resto da
humanidade menos privilegiada. Não, a cultura é, em si, o absoluto que o homem
pode atingir.
O livro divide-se em duas
partes, saber e poder. Juntos, estes termos têm um significado político: evocam
a função da cultura como capacitação do indivíduo para fazer as suas escolhas.
A divisa do positivismo de
Auguste Comte era ‘saber é poder’. No tempo das sociedades antigas, guerreiras,
o poder era um poder fáctico, era a capacidade de dominar o outro. A história
não é um conto de fadas, é extremamente violenta. E a cultura, digamos, é uma
resposta que estabelece um espaço diferente dessa violência radical, original,
do mundo. A cultura é a barca que construímos para acedermos a um destino que
pensamos ser mais adequado à humanidade.
Uma sociedade culta é uma sociedade mais justa, menos violenta?
Já vimos que não há padrões. Os
gregos fizeram uma separação entre eles e os bárbaros. E o que é o bárbaro? É
um outro, com outra cultura e outra linguagem. Aquela linguagem que nós não
entendemos. E eles podiam dizer de nós a mesma coisa. É como a relação entre
patrões e criados: os patrões pensam que dispõem da lucidez, das boas maneiras,
e que os criados são cegos. Não, foram é silenciados durante parte da história.
Até que se revoltam, de forma violenta como Espártaco, ou caseiramente como nos
romances do século XIX.
Na introdução que escreveu, quebra um pouco o otimismo do autor.
Este diz-nos que a cultura está ao nosso alcance e o professor contrapõe que o
nosso tempo é o da caverna de Platão, um tempo de aparências. Porquê?
Porque é o preço que pagámos por
pensar que estávamos já na luz plena. A humanidade tem tendência a pensar que o
ponto onde está é ponto ómega da história, e tal não existe. Na ordem cultural,
não há como separar o positivo do negativo, o que nos perde do que nos salva, o
que nos engrandece do que nos diminui. Essa é uma luta interna, e é uma luta
que não tem sujeito. A humanidade inteira é assim.
Mas viver na caverna não significa vivermos enganados?
Só nos salvamos da caverna com a
consciência de estarmos na caverna. Isto aplica-se à televisão: pensa-se que
aquelas imagens são reais mas o real está lá fora, é o que ilumina o fundo da
caverna. Para vermos o real, temos de voltar a cabeça para trás.
E estamos a olhar para a frente?
Estamos sempre a ver as imagens,
em vez de estarmos em contacto com a realidade.
A dada altura, constata que
nunca como hoje houve de forma tão marcada o oposto da cultura, que existe para
nos distrair dela.
Em vez de a cultura ser aquilo
que nos acorda, é aquilo que nos distrai — uma espécie de distração sublime.
Nós podemos ser sufocados pela riqueza, como as abelhas no seu mel.
Kierkegaard, autor que aprecio muito, ficou muito indignado porque o
protestantismo na Dinamarca era vivido como se fosse água, como algo comum. Em
vez de ser qualquer coisa que pusesse as pessoas em causa, era recebido como um
caramelo.
É assim que vivemos hoje? Como “personagens de jogos de vídeo”,
num presente que se basta a si próprio?
Um presente contínuo. Se a
humanidade tem uma essência qualquer, é justamente ter memória de si mesma.
Portanto, estamos a roubar a memória a nós próprios. Recorrendo a um exemplo
extremo: a humanidade podia, praticamente desde que nasce até que morre, estar
a olhar para a televisão. Poderíamos passar uma vida inteira a assistir a um
filme no qual somos os atores principais, sem vivermos nada. Este é um pesadelo
tão grande como o de Kafka. Porém, não se deve fazer uma leitura totalmente
negativista, porque nessa nova atividade o futuro está implicado. Isso é, como preconiza, o fim do sujeito cultural, com memória.
É para onde tendemos, nesta
espécie de ludismo universal. O que não significa que não existam hoje pessoas
que possam vir a ser os próximos Dante ou Proust. Penso que todos nós somos
atores do cultural. Todos queremos estar nessa situação — nem que seja pela
aberração ou pela diferença — que não faça de nós um robô, antes que as nossas
invenções nos convertam num tipo de existência robótica.
Como se sai daqui?
Em última instância, o importante
é a nossa relação com o outro. É não falhar a relação que estabelecemos com uma
só pessoa. O resto virá por acréscimo.
Diz que o “fim da história” diagnosticado por Fukuyama é o fim do
tempo europeu e o início de um “antitempo” americano. Quer explicar?
O “fim da história” é uma ideia
que vem de Hegel e que foi retomada por Marx. É o fim de nós enquanto incapazes
de nos apropriarmos plenamente do nosso destino. Até agora, a história humana é
a história da nossa própria escravidão. O fim da história é o acordar desse
longo período de escravidão para reconhecer as exigências do real. A história é
uma luta entre quem tem e não tem poder. E os EUA, já na Grande Guerra mas
sobretudo na II Guerra Mundial, ficaram com a possibilidade de condicionar o
destino da humanidade. Assumiram esse papel, que originou um paradigma
cultural. A expressão mais lúdica de todas, o cinema, mostra-o bem. O grande
acontecimento deste ano foi o “Star Wars”. Quando estava a ver o filme, pensava
para mim: na Europa andamos há muito vestidos de americanos. É que, mesmo que
os europeus quisessem — e não por falta de talento —, não poderiam fazer um
filme como aquele. A América sente-se mesmo responsável pela marcha do mundo.
E a Europa não?
A Europa esteve várias vezes à
beira do abismo. E agora estamos à espera que acorde. Tem um passado que é como
as asas longas do albatroz de Baudelaire: impede-a de marchar. A humanidade
habituou-se a conhecer a sua própria história como uma sucessão de impérios, e
cada um pretendia ser o último. Desta vez, os Estados Unidos são mesmo o último
império — ainda que provavelmente já numa fase crepuscular. Mas, sabe, no outro
dia, no centenário de Frank Sinatra, prometi nunca mais dizer nada de negativo
contra os americanos.
Porquê?
Porque pessoas como Sinatra são
um fenómeno só americano. É um sujeito que parte do nada, europeu, e que por
uma qualidade, um talento, conquista aquele país. Este é o triunfo da Europa na
América, mas também da América sobre a Europa.
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