terça-feira, 13 de maio de 2014

Rawls - Justiça como equidade


Rawls é um neokantiano. 
Como se recordam Kant não identifica o bem com um conteúdo específico, mas define a acção boa como aquela que cumpre o imperativo categórico: “age de forma que a máxima que rege a tua acção se transforme numa lei universal”. A ética Kantiana é, assim, um ética do dever, uma ética que centra na acção e na intenção o valor da acção e não nas consequências que dela decorrem ou nas finalidades que se pretendem com essa mesma acção. Isto faz com que se diga que é uma ética formal, opondo-se às éticas materiais que dizem qual é o bem e o que se deve fazer para o alcançar.

Rawls como neokantiano não concebe um bem específico, mas como neokantiano acredita na racionalidade humana e na capacidade da razão produzir enunciados e proposições universais (e por isso intersubjectivas).

Assim, qual é o ponto de partida de Rawls? A igualdade racional dos homens, mesmo que cada um de nós seja diferente e tenha diferentes capacidades e virtudes.

Qual o seu objectivo? Criar os princípios de uma sociedade justa.

                Rawls começa por criar uma situação hipotética que coloca todos os homens em igualdade de circunstâncias; são livres e racionais; nenhum sabe que lugar ocupa ou ocuparia na sociedade, em termos de nascimento, riqueza, capacidades. Ou seja cada um seria ignorante face a si e aos outros. A este exercício hipotético chama Rawls o véu da ignorância.

                Nesta situação como definiriam os homens o acordo social? Quais os princípios que permitem que cada um dos homens tire vantagens das suas capacidades e do facto de existir uma sociedade e elimine as desvantagens de existir essa mesma sociedade e minimize eventuais perdas por não ter ele mesmo capacidades que outros têm?

O acordo social a que estes homens, ignorantes face a si mesmo e à sua condição e circunstâncias, chegam é um acordo racional, acerca de princípios de justiça:

Os princípios da justiça são dois,:[1]

1.º - “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras pessoas”;

2.º - “as desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que: (cumpra duas condições)  
a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; (o maior bem para o menos favorecido).
b) decorrem de posições e funções às quais todos têm acesso.” (acesso a lugares e funções em igualdade equitativa de oportunidades).

                Estes princípios estão ordenados por prioridade do primeiro sobre o segundo. 
O primeiro princípio – princípio da igualdade (igual liberdade) – impõe que as restrições à liberdade ocorrem em benefício da própria liberdade e para aumentar a coesão das liberdades ao nível social. 
O segundo princípio subjaz à distribuição de riquezas, oportunidades e poderes. 
O momento a) deste princípio fornece o princípio da diferença que visa regular as desigualdades económicas e plasma a ideia de justiça distributiva. 
O momento b) afirma a igualdade equitativa de oportunidades.[2]


B – resposta desenvolvida e mais complexa

A questão rawlsiana de estabelecer se uma sociedade é ou não justa enquadra-se nas posições políticas dominantes: entre o socialismo e o liberalismo, sendo que o liberalismo pode ser mais liberal ou mais social-democrata. A sua variação depende da concepção do papel e dever do estado no domínio da justiça social que compense as desigualdades ou inversamente que a justiça social não só sobrecarrega o estado, as empresas e indivíduos como “atenta contra a possibilidade de todos terem êxito numa sociedade de liberdade económica” (Malherbe, M. E Gaudin, P. 2001. p. 453).

Rawls responde que “a exigência da justiça não pode desaparecer na confiança concedida ao «Mercado» para resolver os problemas sociais”. E isto em nome do liberalismo.

A base do liberalismo é de que “o indivíduo é a base das relações sociais, a autoridade do estado só é legítima se fixar um quadro que permita à liberdade individual exprimir-se”. Neste sentido o estado respeita a liberdade de consciência e é filho da reforma protestante e das luzes.

Convém desde já identificar Rawls como liberalista moderado ou liberalista igualitário, defensor de um individualismo moderado, pelo que sofre a crítica da corrente liberal que defende o individualismo radical, próxima em termos práticos do liberalismo clássico e apelidada de libertarismo[3] ou corrente libertária, bem como das posições comunitaristas.

Partindo da filosofia profunda do liberalismo: “quando um indivíduo se desenvolve, dá aos outros a ocasião de eles mesmos se desenvolverem”[4], Rawls pode ser compreendido invertendo a concepção naturalista de que os homens são naturalmente desiguais e é a sociedade que pode aprofundar essa desigualdade ou atenuá-la e eliminá-la. Assim, podemos pensar que os homens nascem iguais e é a sociedade que produz a desigualdade, sendo esta necessária à própria sociedade, pelo que “a sociedade deve manter a possibilidade de uma concorrência e de redistribuição das oportunidades de cada um, que fazem com que uma sociedade seja dinâmica e criadora de riquezas.”[5] A equidade seria, assim, a preocupação política de encontrar regras que produzam não a igualdade bem sucedida, mas a «justa desigualdade»

Rawls define o “conceito de justiça como a consignação imparcial de direitos”[6]. O direito reconhecido a alguém dá-lhe a legitimidade de o reivindicar tendo em conta as circunstâncias objectivas de coexistência e de relativa igualdade das capacidades dos indivíduos e produto e as circunstâncias subjectivas dos projectos pessoais que entram em conflito.

O objectivo de Rawls é o elaborar “a base moral que melhor se adequa a uma sociedade democrática”, resolvendo a aporia entre igualdade e liberdade. A resolução da aporia “deve procurar estabelecer que existe uma formulação da justiça que permita justificar a garantia de algumas liberdades civis e políticas (...) limitando as desigualdades na distribuição dos recursos e das posições de influência  uma maneira compatível com a igualdade de estatuto de cada cidadão” (Guillarme, B., p. 259).

A sua teoria parte da crença de que a razão humana pode representar os princípios de acção política e moral de forma objectiva. Este aspecto tem uma dimensão pessoal mas igualmente colectiva, pois, numa democracia, os cidadãos são os autores das normas que regem a sua existência social e política”[7] de forma que a cooperação é essencial à prática democrática. Desta forma afasta-se da visão atomista da acção individual em que a administração se limitaria a coordenar essas acções para maximizar a utilidade social.

Está presente nesta formulação o ideal de reciprocidade[8] pois o entendimento de que a obrigação a que se submete nos empreendimentos cooperativos é suportado pelo reconhecimento mútuo de serem pessoas livres na escolha e iguais nas capacidades e interesses.

O ideal de reciprocidade é concebido por Rawls com o recurso ao “véu da ignorância”. O “véu da ignorância” é um exercício que concebe os homens em posição de decidir sobre o seu interesse pessoal desconhecendo a sua circunstância particular e as suas características pessoais. Numa palavra ignorando toda a dimensão empírica da sua constituição e da sociedade para a qual tomam decisões. É neste contexto que o processo de deliberação e decisão individual manifesta toda a razoabilidade humana.

É no contexto de racionalidade do “véu de ignorância” que é concebida a dimensão ética e política da teoria de Rawls. A razoabilidade racional dos indivíduos sob o “véu de ignorância” conduz cada um a pensar que para realizar a concepção particular de bem têm de atender aos outros interessados, com concepções igualmente particulares de bem, pelo que é razoável que para maximizar a sua parte tenham de conceber o mesmo aos outros. Daqui deriva o primeiro dos princípios de justiça: o direito de todos às liberdades de base. Mas assegurados os bens primários, e desconhecendo a inveja e as circunstâncias em que decidem presentes (e futuras) a forma de garantir a dignidade pessoal, as relações de cooperação e a sociedade democrática, terá de existir um segundo princípio que garanta a igualdade equitativa de oportunidades e o benefício dos mais desfavorecidos na produção de riqueza e na desigualdade económica e social. Uma vez que cada indivíduo é respeitado nas suas liberdades básicas e é tomado como pessoa é uma possibilidade que cada um desenvolva formas de vida diversas em função de capacidades, de circunstâncias e do ideal de bem. Desta forma a desigualdade entre os homens tende a existir, até porque a diferença entre eles é essencial para a dinâmica social. Contudo a desigualdade é suportada pela razoabilidade humana enquanto dignificar o outro (o homem surge sempre como fim e nunca como meio, tal como em Kant) ou seja enquanto existir em benefício dos mais desfavorecidos da sociedade. (Até porque cada sujeito desconhecendo o futuro terá nesta formula um princípio pragmático de sobrevivência digna em condições sociais desconhecidas.

Rawls tem como noção de pessoa um ser dotado de autonomia, no sentido de poder, por si, realizar a sua concepção particular de bem, pressupondo a disposição de capacidades de compreender, julgar, decidir e agir de acordo com uma concepção de justiça. A noção de pessoa tem, assim, os atributos essenciais de racionalidade (capacidade de agir à luz de princípios, ditados pela própria razão)[9] e autonomia (capacidade de agir em função da sua racionalidade)[10], pelo que o contrato social é possível entre homens que se pensam numa relação de reciprocidade.

A justiça social e princípios do liberalismo igualitário

A justiça social tornou-se necessária “devido à escassez relativa dos recursos e devido à pluralidade das concepções de bem a que os indivíduos estão apegados. Como numa democracia, a sociedade é uma realização da cooperação entre pessoas livres e iguais, a justiça social tem de distribuir os direitos e os benefícios da cooperação segundo a norma da reciprocidade” [11]

 Os princípios da justiça são dois, derivam da racionalidade humana colocada na “posição original” que concebe a reciprocidade como ideal e são enunciados por Rawls[12]

1.º - “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível com um sistema de liberdades idêntico para as outras pessoas”;

2.º - “as desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas por forma a que: a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam em benefício de todos; b) decorrem de posições e funções às quais todos têm acesso.”

                Estes princípios estão ordenados por prioridade do primeiro sobre o segundo. O primeiro princípio – princípio da igual liberdade – impõe que as restrições à liberdade ocorrem em benefício da própria liberdade e para aumentar a coesão das liberdades ao nível social. O segundo princípio subjaz à distribuição de riquezas, oportunidades e poderes. O momento a) deste princípio fornece o princípio da diferença que visa regular as desigualdades económicas e plasma a ideia de justiça distributiva. O momento b) afirma a igualdade equitativa de oportunidades.[13]

A igualdade entre as pessoas, ponto de partida e de chegada da teoria rawlsiana, é entendida a dois níveis: a manutenção de bens primários e o direito a um tratamento igual independentemente da posição social. Os «bens sociais primários» incluem liberdades básicas, rendimento, riqueza, bases do respeito por si próprio, oportunidade.

O critério subjacente à escolha dos dois princípios é o critério Maxmin que impõe às partes a maximização do mínimo possível.

As liberdades de base são a garantia do exercício das faculdades morais fundamentais: as escolhas, decisões e acções desenvolvidas em função do bem particular. Rawls rejeita o sistema da liberdade natural pois as distribuições da riqueza iria depender de factores inatos e circunstanciais que “são arbitrários do ponto de vista moral”[14]. A arbitrariedade não deriva da relação causal que produz determinada motivação e intenção (o que seria uma contradição nos termos), mas “porque não existe garantia de cada um ser livre e igual. Assim as contingências naturais, sociais e acidentais afectam a vida de cada um, mas só sendo mantidas dentro de limites são compatíveis com o ideal democrático de uma sociedade concebida como um sistema de cooperação entre pessoas livres e iguais. Daí que o segundo princípio de justiça aponte para a compatibilização das desigualdades com a justiça social democrática.

Podemos daqui inferir da a necessidade de intervenção do estado para colmatar as desigualdades que em última instância destroem a igualdade de oportunidades, uma vez que “numa sociedade de cidadãos livres e iguais a igualdade de oportunidades deve ser equitativa e não só formal”[15]. Para garantir esta exigência é importante que a riqueza, a origem social não se transformem em diferenciadores sociais, pelo que tem importante papel “garantir possibilidades de educação igual para todos”[16].

Assim, “o princípio da diferença deve ser interpretado de maneira igualitária, se quisermos que a igualdade equitativa das oportunidades seja mantida”[17] 

Mas não são só a origem social a ter em conta, também deve ser tido em conta a contingências individuais, externas ou internas, pelo que os mais favorecidos devem trabalhar para o bem dos mais desfavorecidos.

Na concepção de justiça e de sociedade democrática justa a estigmatização, o facto de ser tratado como inferior, deve ser evitada na medida em que o “respeito por si próprio deve ser garantido a cada cidadão”[18], limitando os níveis de desigualdade que a justiça equitativa autoriza. Desta forma e situando-nos ao nível da educação, “não devemos distribuir os recursos educativos, na totalidade ou em parte, só em função do seu resultado de acordo com os critérios de produtividade, mas também em função do seu valor de enriquecimento da vida social e pessoal dos cidadãos, incluindo os mais desfavorecidos”[19].

A desigualdade pode igualmente ser a fonte de dominação, enquanto controlo inaceitável de uns sobre a vida dos outros. Numa sociedade democrática justa ou seja de justiça equitativa e não somente formal, deve desenvolver formas de equidade política: deve garantir o valor equitativo das liberdades políticas. Estas são um caso espacial das liberdades de base por serem de natureza concorrencial, uma vez que o espaço político é limitado. Desta forma os cidadãos devem ter uma oportunidade equitativa de ocupar uma posição pública, limitando a influência dos meios económicos económico e sociais de que os indivíduos dispõem.

“numa democracia, o poder político, que é sempre coercivo, é o poder do público, quer dizer, de cidadãos livres e iguais constituídos num corpo colectivo”[20]. Desta forma o poder político é resultante da cooperação entre sujeitos. O poder político será um espaço contratual, assegurado pela autonomia dos cidadãos. A autonomia não é ausência de história e de condicionantes sócio-culturais. A sociedade é um espaço que não pode ser escolhido e não pode ser escolhido porque marca o género de pessoa que somos. A sociedade é uma condicionante indispensável, enquanto formadora da dimensão humana do homem e igualmente promotora de valores próprios e a partir dos quais conferimos significação à realidade e exercemos a vontade e a escolha.

O princípio da legitimidade política formula que o exercício do poder político  só é correcto se se harmonizar com uma constituição que todos os cidadãos possam subscrever, enquanto produto da razoabilidade e racionalidade. Este princípio tem como corolário a exigência da publicidade, de forma a que cada cidadão tenha acesso a todas as razões que fundam a acção do poder político. A transparência das decisões políticas é uma exigência do modelo democrático. Do princípio de legitimidade política resulta o princípio de neutralidade do Estado: os valores políticos são neutro face às diversas doutrinas políticas que agregam formas diversas de conceber o bem. Desta forma “o Estado não pode tomar medidas que tenham por fim favorecer uma doutrina exaustiva particular, e deve garantir a todos uma oportunidade igual de realizar a concepção (permissível) do bem que cada um escolheu”[21] e não deve favorecer nenhuma em particular.

[1] Rawls (1993) Uma teoria da justiça. Editorial Presença, p. 68
[2] Em sequência da crítica de H. L. ª Hart, a disposição dos dois momentos do segundo principio estão invertidas na obras seguintes: Tanner Lectures on Human Values. Vol III, 1982, Salt Lake City: University of Utah Press (compilada em Justice et democratie, Org. Audard, C., 1993. Paris: Seuil.
[3] R. Nozick é um dos representantes do liberalismo mais radical: o libertarismo. O libertarismo de Nozick partindo da inviolabilidade do sujeito e de tudo o que lhe pertence, a sua propriedade, inviabiliza qualquer dimensão distributiva do estado ou qualquer forma de tributação sem o consentimento expresso do sujeito.
[4] Malherbe, M. E Gaudin, P. 2001. p. 456
[5] idem, p. 456.
[6] Guillarme, B.(2002) Justiça e democracia, in Renaut, Alain. História da Filosofia Política/5 - As filosofias políticas contemporâneas. Lisboa: Instituto Piaget, pp. 257, 258.
[7] Guillarme, B.(2002), p. 260.
[8] A reciprocidade impõe-se “quando pessoas livres, que não têm nenhuma autoridade moral umas sobre as outras, e que participam conjuntamente numa actividade (ou que nela se encontram implicados) estabelecem entre si as regras que definem esta actividade e que determinam as suas quotas respectivas de benefícios e de encargos”, Rawls, J. Citado por Guillarme, B.(2002), p. 261.
[9] Desta forma a racionalidade implica a razoabilidade, presente aliás na figura do “véu da ignorância”.
[10] mas sem a conceber de forma radical, à maneira Kantiana: independência face às causas externas à razão.
[11] Guillarme, B.(2002), p. 264.
[12] Rawls (1993) Uma teoria da justiça. Editorial Presença, p. 68
[13] Em sequência da crítica de H. L. ª Hart, a disposição dos dois momentos do segundo princípio estão invertidas na obras seguintes: Tanner Lectures on Human Values. Vol III, 1982, Salt Lake City: University of Utah Press (compilada em Justice et democratie, Org. Audard, C., 1993. Paris: Seuil.
[14] Rawls, J. Uma teoria da justiça, p. 72-74/103-105.
[15] Guillarme, B.(2002) Justiça e democracia, in Renaut, Alain. História da Filosofia Política/5 - As filosofias políticas contemporâneas. Lisboa: Instituto Piaget, p. 270.
[16] Ibid. Ibidem.
[17] Ibid., p. 271.
[18] O respeito por si próprio inclui o sentimento do seu próprio valor e a convicção de que a sua concepção de bem é digna de ser realizada, bem como a confiança na sua capacidade de realização
[19] Rawls, J. Uma teoria da justiça, p. 107/137.
[20] Rawls, J. Political Liberalism, p. 216/264, citado  por  Guillarme, B, op. cit., p. 276.
[21] Guillarme, B.(2002) Justiça e democracia, in Renaut, Alain. História da Filosofia Política/5 - As filosofias políticas contemporâneas. Lisboa: Instituto Piaget, p. 281.