terça-feira, 23 de setembro de 2014

Física e a questão de Deus

Físico célebre diz que Deus já não é necessário. Mas o que sabe a Física para decidir sobre Deus?


Declarações de Stephen Hawking proferidas no fim de semana reacenderam o velho debate, que de resto é permanente, sobre a relação entre Ciência e Religião.





Analisámos o que foi dito e envolvemos na reflexão uma filósofa e um físico portugueses.

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Stephen Hawking, um dos cientistas mais importantes do mundo, acaba de declarar que não acredita em Deus. Por ocasião da sua participação numa conferência de astrofísicos em Tenerife (Espanha), o físico britânico deu uma entrevista ao diário "El Mundo" onde sugere que a ideia de um criador divino já não é necessária.

"No passado, antes de entendermos a Ciência, era lógico acreditar que Deus criou o Universo. Mas agora a Ciência oferece uma explicação mais convincente", diz. Referindo-se à ideia com que termina o seu famoso livro "Uma Breve História do Tempo" - se conseguíssemos elaborar uma Teoria de Tudo, conheceríamos a mente de Deus - explica-a agora deste modo: "O que quis dizer quando disse que conheceríamos a 'mente de Deus' foi que compreenderíamos tudo o que Deus seria capaz de compreender caso existisse. Mas não há nenhum Deus. Sou ateu. A Religião crê em milagres, mas estes não são compatíveis com a Ciência".

Em rigor, não é a primeira vez que exprime estes pontos de vista. Já na sua obra "O Grande Desígnio" (editada pela Gradiva, como a "Breve História") tinha dito que não era preciso recorrer a Deus para compreender de onde nasceu o Universo. Chegou a afirmar que a matéria podia "criar-se do nada, por geração espontânea". As declarações agora produzidas apenas reacendem o velho debate, que de resto é permanente, sobre a relação entre Ciência e Religião.

"Ele não está a dizer nada de novo", explica o físico Carlos Fiolhais, professor catedrático da Universidade de Coimbra. "Está a causar alguma confusão, pois estes temas, que em tempos foram muito próximos, hoje são coisas distintas. Não é através do telescópio, do microscópio, do acelerador de partículas, que se consegue chegar a Deus. É mesmo impossível. Não há nenhuma prova científica, e nunca vai haver, da existência de Deus."

 

Certezas, interrogações e um acontecimento violento
Fiolhais contextualiza as anteriores referências de Hawking à divindade, recordando o exemplo de Einstein. O autor da Teoria da Relatividade também falava de Deus, mas como metáfora para a harmonia cósmica - por exemplo, quando dizia que Deus não jogava aos dados. Era uma maneira de enunciar ideias difíceis de exprimir de outra forma. Quanto à declaração de ateísmo efetuada por Hawking, tem pouco que ver com a posição militante e agressiva de outros cientistas, em especial Richard Dawkins. Ao contrário deste último, Hawking parece não ter qualquer intenção de atacar a Religião enquanto tal. Limitou-se a exprimir as conclusões a que o levou o avanço do conhecimento na sua área.

Ainda assim, há quem lamente a confusão de planos a que uma tal posição, assumida por um cientista com a sua proeminência - e em nome daquilo que aprendeu enquanto cientista - pode gerar na opinião pública. "A Física é uma ciência muito séria, com a sua área própria de investigação. Não lhe cabe discutir questões teológicas", diz Olga Pombo, coordenadora do Centro de Filosofia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "Agora, o homem, o cidadão que se chama Stephen Hawking, pode ser crente ou ateu. São coisas que tem inteira liberdade para ser, pois relativamente a esse problema da existência de Deus, há séculos que a Humanidade anda a pensar nisso e não chegou a nenhuma conclusão. Nem chegará. Produziram-se imensas provas da existência de Deus, mas nenhuma conseguiu convencer os não crentes."

Pombo não fala de modo algum a partir da posição de quem defende a Religião, como se vê pelas críticas que faz a outro tipo de situações frequentes em Portugal. "A Igreja Católica tem um peso muito grande e consegue infiltrar-se em todo o lado. Durante muito tempo, até era engraçado. Para uma discussão sobre problemas de Bioética, por exemplo, chamava-se um cientista e ele afinal era padre. Chamava-se também um filósofo e era padre. E, além disso, havia o padre." Não acontecia só em matéria de Bioética. Também terá havido, a certa altura, uma tentativa de importar para o nosso país as teorias que rejeitam a evolução darwiniana. "Essa questão do criacionismo nos Estados Unidos é muito grave. Nalguns casos decidiram proibir o ensino da teoria evolucionista, que é uma teoria científica. O criacionismo não é", refere Olga Pombo.

"O que é que acontece com essas teorias terríveis do intelligent design?", continua Pombo, referindo-se a uma linha argumentativa dos criacionistas. "Mais uma vez, há uma confusão de planos. Os cientistas ligados a isso dizem que conseguem provar a existência de um arquiteto, de um designer que teria feito o Universo. Isso não tem nada que ver com Ciência nem com Filosofia. Também aí, é uma confusão que tem que ver com interesses ideológicos".

Fiolhais insiste igualmente na necessidade de distinguir Religião e Ciência e dá um exemplo que quase contraria Hawking: "O mundo existe, sobre isto não há dúvidas. Mas hoje sabemos que no início do Big Bang há uma transição da não-existência para a existência. Passa-se do nada para o ser. Como? Isto sempre foi uma questão filosófica. Ele diz que as modernas teorias da Física permitem o aparecimento do Universo. Mas a Física não pode falar sobre o que aconteceu antes do Big Bang. Não tem informação sobre isso. Não há experiência nenhuma, observação nenhuma. Aquilo foi um acontecimento de tal forma violento, com tanta energia, que apagou qualquer informação sobre o mundo atrás do nosso mundo".

Para boa compreensão, eis o que Hawking disse ao "El Mundo" sobre as possibilidades das ciências: "Acredito que conseguiremos entender a origem e a estrutura do Universo. De facto, mesmo agora já estamos perto de lograr esse objetivo. Não há nenhum aspeto da realidade fora da mente humana."


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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Retórica - Persuasão ou Manipulação

O poder é da palavra

FILIPE SANTOS COSTA07.09.2014



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Em 1997, quando venceu pela segunda vez as eleições autárquicas em Sintra, Edite Estrela conseguiu, por fim, a primeira maioria absoluta. Para a autarca socialista era uma excelente notícia, mas por esses dias a ideia de maioria absoluta era tão popular como a peste negra.
Após dez anos de cavaquismo, o politicamente correto era ser contra as maiorias absolutas, que o PS tinha ajudado a diabolizar e de que o estilo dialogante de Guterres pretendia ser um contraponto. Edite, ela própria uma guterrista de gema, sentiu que devia uma explicação.
A mulher que se tinha apresentado ao país, uns anos antes, a dar dicas para falar bem português decidiu que na sua tomada de posse devia dar uma pequena aula sobre a origem da palavra "absoluto" e tirar-lhe a carga pejorativa que se lhe havia colado.
"A maioria absoluta tinha-se tornado sinónimo de prepotência e arrogância. Então, na tomada de posse, achei que era desejável - do ponto de vista político, mas também enquanto linguista-lembrar que 'absoluto' vem do latim absolvere, que também está na origem do verbo absolver. Etimologicamente, absolvere significa soltar, libertar, que é o contrário da ideia de prepotência que se colou à maioria absoluta de Cavaco Silva." Recordando esse discurso, Edite Estrela frisa que "as palavras podem ganhar um significado diferente conforme o contexto, e em política é muito comum essa distorção".
Às vezes, a distorção acontece por ignorância. Com as democracias liberais e a massificação da participação política, a política deixou de ser coisa só de elites, e para chegar "lá" deixou de ser necessária educação esmerada e domínio da retórica - pelo contrário, às vezes só atrapalham e criam distância em relação ao "povo". Outras vezes, a distorção é propositada (já lá vamos). Num caso ou noutro, vai dar ao mesmo: as palavras são a matéria-prima da política, mexer-lhes ou usá-las mal tem consequências. "A palavra é uma arma", diz o povo. "Com palavras governam os homens", dizia Disraeli, primeiro-ministro inglês que se destacou pelo brilhantismo com as palavras e não tanto com a governação.
A tentação da manipulação
"A palavra na política é mais importante do que em muitos outros domínios, porque sem palavra não existe política, a discussão, a divergência, a convergência", diz Miguel Morgado, professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. A palavra permite mostrar, afirmar, decretar, esconder, iludir, combater, convencer.
Tudo isto são recursos da política, em tudo a palavra é condição sine qua non. "Aristóteles definiu o homem como um animal político porque possui a faculdade do logos, a faculdade discursiva. Nesse sentido, a palavra é fundadora da política e tem consequências políticas enormes", sublinha o professor de ciência política.
É assim nas sociedades abertas, em que todos podem participar pela palavra, mas também nas sociedades fechadas, onde essa prerrogativa é apenas de quem detém o poder.
Mesmo as tiranias precisam da palavra para construir uma narrativa que as legitime e justificar o seu exercício do poder. Ainda que, para isso, tenham de virar-lhes o sentido do avesso e repetir, à exaustão, que o preto é branco, o mau é bom, a opressão é liberdade.
Aleksandr Soljenitsin chamou à União Soviética o "regime da mentira" - de tanto usar a palavra para justificar os seus atos e políticas levou à sua corrupção total. Foi a inspiração para o modelo totalitário de George Orwell, que criou um mundo de ficção em "1984" onde o Governo, para além de retirar todas as liberdades, cria uma nova língua à medida da sua conveniência - a novilíngua. Faz sentido: se a palavra é a matéria-prima da política, quem tem ou ambiciona o poder não só usa a palavra como terá a tentação de lhe moldar o significado.
"Dominar o sentido das palavras é uma questão de poder. Quem pode condicionar o uso ou o significado das palavras tem uma grande vantagem no debate político", diz Miguel Morgado, frisando que "a corrupção do sentido das palavras é um mecanismo comum de todos os totalitarismos". Mas não só.
Nas democracias, o politicamente correto acaba por ter um efeito parecido. "O politicamente correto pretende politizar as palavras e condicionar a sua utilização. Isto é um grande perigo para as democracias, porque este regime, em que todos devem ser iguais e participativos, recorre mais ao facilitismo das palavras.
Politizar o sentido das palavras e condicionar o seu uso, numa democracia, é como tirar-lhe o oxigénio. É muito importante salvar a democracia deste perigo, porque ao limitar-se a linguagem limita-se o debate, o acesso ao debate e a participação."
A mentira. Junte-se o esvaziamento e/ou corrupção do sentido das palavras, polvilhe-se com falta de rigor e é bem provável que o resultado seja... mentira. Sim, é verdade: num texto sobre a palavra e a política, não podia faltar a mentira. Há cinco séculos que Maquiavel tirou aos políticos o peso da consciência (aos que têm consciência e sintam peso nela) por mentirem, ou, como se diz em politiquês, "faltar à verdade". "Não pode, portanto, nem deve, um senhor prudente observar a fé jurada, quando tal observância redunde em seu prejuízo, e quando tenham desaparecido as razões que fizeram que a jurasse.
(...) Nem nunca a um príncipe faltarão pretextos legítimos para mascarar a inobservância", escreveu o florentino em "O Príncipe", um compêndio de recomendações aos governantes que queiram manter o poder e que ficou para a História resumido a uma máxima: os fins justificam os meios.

Foi preciosa a ajuda de Maquiavel, que ensinou aos políticos que não há mentiras - há é razões de Estado e circunstâncias que se alteram. Quando era candidato a primeira-ministro Durão Barroso prometeu baixar os impostos e ao chegar ao poder aumentou-os? Não mentiu, a situação é que era mais grave do que se julgava (ou seja, fica implícito que quem mentiu foi o antecessor, ao esconder toda a verdade). José Sócrates fez parecido: prometeu que não subiria os impostos... e subiu - outra vez, tinha sido enganado pelo antecessor.
E quando Sócrates sucedeu a Sócrates e voltou a aumentar os impostos, contrariando nova promessa, a culpa não foi do antecessor, mas da mudança de circunstâncias...
"O discurso político é, em grande medida, um discurso que projeta, que abre um caminho, que traça um plano de intenções para o futuro. Se pensarmos no plano da propaganda política, encontramos aí um terreno fértil bastante provável para o incumprimento das promessas dadas: afinal, trata-se do futuro e nem sempre todas as garantias e bases estão asseguradas, e o povo sabe-o", diz Paula Espírito Santo, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), que se tem debruçado sobre o discurso político.
"Em política escolhe-se também pala capacidade de sedução, de fazer-se acreditar num projeto de futuro para o país. No entanto, a realidade a cada passo faz-se aparecer, e o sonho e os projetos são testados a cada momento.
Daí que a 'elasticidade' discursiva em política possa, no limite, levar à desilusão e ao descrédito na política, se utilizada de modo oportunista e com uma visão de curto prazo", acrescenta a investigadora.
Ou seja, "na política, as palavras são muito mais elásticas", como diz António Cunha Vaz, um dos maiores consultores de comunicação do país. "O significado das palavras na política não é tão preciso, têm um significado mais lato, menos rigoroso", diz, comparando a política com a economia, outra área em que tem grandes clientes mas onde cada palavra tem de ser pesada com muito mais rigor. Um bom exemplo da imprecisão que tomou conta da linguagem política é o facto de raramente um político acusar um adversário de mentir - convencionou-se que, em politiquês, não se dizem mentiras mas "inverdades". Mesmo Francisco Louçã, que não costumava poupar nas palavras quando se dirigia a Sócrates, num debate parlamentar perguntou ao primeiro-ministro se este tinha sido "económico com a verdade" quando disse uma coisa e fez outra.
Luís Paixão Martins, outro dos mais importantes consultores de comunicação portugueses (que tem no currículo, entre outras, as campanhas vitoriosas de Cavaco para Belém e de Sócrates para São Bento), discorda da ideia de que as palavras sejam mais moldáveis na política. Pelo contrário, considera que "são muito mais 'vinculativas'. São repetidas frequentemente, são utilizadas como armas de arremesso pelos adversários. A comunicação política é, de longe, a mais escrutinada. E por essa razão é aquela que deve ter mais cuidado com as palavras. E tem." Talvez. Mas séculos de malabarismos de linguagem e de promessas não cumpridas não fizeram muito pela boa imagem da política.
E não estamos a falar da vox pop, do povão que acha que "eles são todos iguais".
Hannah Arendt dizia que "a política é o lugar privilegiado da mentira"; Churchill, que sabia da poda, não tinha dúvidas de que "um político que não sabe mentir é irresponsável". Lembre-se disto da próxima vez que Cavaco Silva disser solenemente "Falo sempre a verdade aos portugueses."
As regras do discurso
Não há uma receita infalível para um bom discurso político, mas, segundo José Manuel dos Santos, escritor e colaborador de Mário Soares e Jorge Sampaio nos anos em que estes ocuparam a Presidência da República, é sempre um bom princípio seguir as dicas dos clássicos. "Um discurso político tem de ter as três dimensões que Aristóteles apontava na 'Retórica': pathos (a capacidade de tocar nos sentimentos), ethos (a credibilidade, autoridade de quem fala), logos (argumentação, racionalidade).
Tirando isso, não há uma receita." Para nos ficarmos pelos clássicos (e para equilibrar gregos e romanos), recorde-se que, segundo Cícero, um bom discurso deve cumprir três propósitos: docere (ensinar), delectare (agradar), movere (comover, afetar emocionalmente).
Nada disto é novo, como se vê, e em boa medida tornou-se um lugar comum. E, já agora, mais um: "Há uma regra que é básica", acrescenta José Manuel dos Santos. "Um discurso funciona de acordo com a pessoa que o faz. Por esquecer isso é que andam todos a dizer mais ou menos o mesmo." Paula Espírito Santo frisa este aspeto: "Um bom discurso político deve estar adequado ao meio ou suporte de comunicação (há bons comunicadores na televisão que não o são em pequenos auditórios e vice-versa, por exemplo); deve estar adequado às características 'cénicas' do seu comunicador (idade, contexto social de onde provém, formação, tipo de personalidade, etc. - não vale a pena querer fazer de um tímido um personagem com graça e extrovertido, pois não vai resultar); e deve estar adequado às características do público para quem vai comunicar."
Luís Paixão Martins não tem uma receita, mas um conjunto de regras que tenta explicar aos políticos com quem trabalha: "Bases objetivas; dados credíveis; partir de estereótipos (o estereótipo é meio caminho andado, poupa-se caminho; é como aqueles atores das séries de TV que, quando entram em cena, sabemos logo que são bons ou maus); encontrar imagens, contextos, frases que pertençam ao património de perceções da audiência; interagir com a audiência, lançar uma ideia e deixá-la aberta até ao final do discurso (anzol de atenção); dar a ideia de que a audiência sai com alguma coisa para fazer, para refletir, para contar (não deixar a audiência de mãos a abanar); um discurso deve ser dito por forma a obter uma resposta positiva da parte da audiência; escrita 'oral', para ser ouvido (e não para ser lido); frases curtas e diretas; repetição do sujeito no início das frases; repetir, repetir (não substituir por sinónimos, sobretudo se complexos); palavras curtas; linguagem muito concreta; imagens fortes e claras." E, claro, ter uma ideia.
Por muito bom que seja um discurso, só ficará na memória se trouxer ideias fortes. Vejam-se as inúmeras listas dos melhores discursos de sempre ou dos melhores discursos do século (é só ir ao Google e a lista não acaba) - em todos há um desígnio capaz de inspirar e mobilizar as pessoas. Seja a ideia de conseguir ("Yes we can") a mudança ("Change"), na eleição de Obama, seja o desafio onírico de uma sociedade sem segregação racial, de Martin Luther King ("I have a dream"), seja a exaltação do sacrifício em nome de um bem maior feita por Churchill no famoso "sangue, suor e lágrimas", ainda a II Guerra Mundial estava no início.
O 'soundbite'
Conseguir apresentar uma ideia numas poucas palavras certeiras que se agarram à memória é uma felicidade ao alcance de poucos. É essa a regra do soundbite, que hoje domina a comunicação política. O politicamente correto (lá está...) diz que o soundbite empobreceu o discurso político, formatando-o para os títulos dos jornais e os noticiários da rádio e televisão.
A ambição de dizer muito em poucas palavras não é de hoje. Simples é bom ("O estilo há de ser muito fácil e muito natural", escrevia o padre António Vieira), curto é melhor. Churchill foi um extraordinário criador de soundbites (já se citou o "sangue, suor e lágrimas", pode-se lembrar outro que perdurou décadas - a sua denúncia de uma "cortina de ferro" que iria dividir a Europa). Reagan também - haverá melhor exemplo do que "Sr. Gorbachev, deite este muro abaixo", proferido em Berlim? "Ao invés de se procurar passar uma mensagem mais densa e ampla que dificilmente ficará na memória, criam-se ideias e frases centrais curtas, de carga simbólica forte, que dificilmente passarão despercebidas primeiro junto dos média e depois junto da opinião pública", explica Paula Espírito Santo. Não será por acaso que, no meio de tantos discursos "redondos" feitos ao longo de dez anos pelo Presidente Jorge Sampaio, uma frase ficou na memória: "Há vida para além do défice." "Encontrar uma forma de comunicar com simplicidade uma ideia complexa nem sempre é empobrecimento. Na maior parte das vezes é riqueza", diz Luís Paixão Martins.
"Ajuda-nos a definir melhor a ideia, a aproximarmos a ideia da perceção dos públicos. Gosto de soundbites, não creio que a pobreza esteja na comunicação. Geralmente, a pobreza está nas ideias. Uma boa ideia resulta sempre num grande soundbite. Um mau soundbite decorre geralmente de uma má ideia." Paulo Tunhas, filósofo e comentador político, tem menos fé nas virtudes do soundbite, que muitas vezes não serve senão para esconder a falta de ideias. "Os políticos atuais conhecem a cultura do soundbite e conhecem, sobretudo, o lado de talkshow que a política tem de ter - a exibição das emoções em estado bruto. O discurso emotivo e o soundbite agressivo substituíram o recurso à retórica", numa tendência para falar ou escrever de modo excessivo sobre si que o filósofo considera "egotismo puro".
O melhor exemplo desse registo, diz o bloguer e professor da Universidade Fernando Pessoa, era o do antigo primeiro-ministro José Sócrates. "Sócrates tem uma retórica plebeia que, enquanto tal, é boa - do estrito ponto de vista da funcionalidade aparentemente funciona, apesar da sua pobreza. Mas é uma retórica que roça sempre o boçal e que vive de uma espécie de oposição agónica com os adversários, uma pessoalização permanente do debate, com consequências políticas na reação ao PM."
O silêncio. "Palavras, palavras, meras palavras", diria Shakespeare. E acrescentaria que "o resto é silêncio". É mesmo - e às vezes dá-se o caso de políticos que nunca se distinguiram pela habilidade com as palavras se destacarem pela ausência delas.
Manuela Ferreira Leite ganhou um lugar na curta história da nossa democracia com uma tática nunca antes vista num líder da oposição: não falar. Não era só falta de jeito, como depois ficou demonstrado, no início era mesmo uma opção filosófica - "Se uma pessoa tem duas orelhas e uma boca é porque deve ouvir o dobro do que fala", dizia Ferreira Leite no seu círculo mais próximo - e uma questão de exemplo: Ferreira Leite teve em Cavaco Silva um bom mestre na arte das poucas palavras.
"O professor Cavaco Silva é mestre na gestão da economia da palavra - o que não é a mesma coisa que gerir os silêncios", emenda Paixão Martins, que trabalhou com o atual presidente na campanha de 2006. "Estuda profundamente o que pretende dizer. Tem ideias muito precisas e expressa-as de maneira muito cuidadosa. Dá valor às palavras e usa-as com o respeito que elas nos devem merecer." Se há políticos que nunca perdem uma ocasião para falar, Cavaco nunca perde uma oportunidade para ficar calado. Mesmo que para isso tenha de meter na boca uma grande fatia de bolo-rei. [nota: este texto, revisto e editado, foi publicado originalmente na Revista de 11-09-2010].


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