quinta-feira, 23 de julho de 2015

O problema epistemológico do desenvolvimento da ciência: o caso da física

Entrevista

Álvaro de Rújula: “Sou o único físico teórico a ter medido uma constante fundamental da natureza”


Em que andam a pensar os teóricos da física para descrever os ingredientes subatómicos do Universo em que vivemos? O físico teórico espanhol inventou uma Deusa para nos fazer perceber a confusão que reina nesta área.



Durante a sua carreira profissional, Álvaro de Rújula foi físico teórico do Laboratório Europeu de Física de Partículas (CERN) – a casa do LHC, o maior acelerador de partículas do mundo, perto de Genebra, onde foi descoberto o bosão de Higgs. Nesse sentido, sempre pertenceu a uma espécie rara: hoje, há mais de 2300 engenheiros e técnicos e uma centena de físicos experimentais no quadro do CERN – mas só seis físicos teóricos.
Aos 71 anos, Álvaro de Rújula está reformado (“faço parte da mobília”, declara), mas continua a trabalhar no CERN e no Departamento de Física Teórica da Universidade Autónoma de Madrid.
Em inícios deste mês, deu uma palestra no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, no âmbito da conferência internacional Light, from the earth to the stars (A luz, da Terra às Estrelas), organizada pela agência Ciência Viva e pela Academia Europaea - Barcelona Knowledge Hub por ocasião do Ano Internacional da Luz. A seguir, quando falamos lá fora, sentados num banco da Expo-98 à sombra de uma árvore, Álvaro de Rújula brindou-nos com respostas ao mesmo tempo humorísticas e sérias, um registo que parece a sua forma predilecta de comunicar.
Já teve ideias “malucas” no seu trabalho como físico?
Nem por isso. O que faço é tentar saber como funcionam as coisas ao nível fundamental. Trabalhei muito no chamado Modelo-Padrão, que nos explica quase tudo o que hoje percebemos (mas não tudo) – e naquela altura, os meus contributos não eram coisas malucas. Até porque estavam certas. Também não eram nada do outro mundo, mas dei o meu contributo. Também trabalhei em muitas outras coisas, aspectos da cosmologia, física das partículas, fiz um pouco de astrofísica. O meu espectro de interesses é amplo.
Foi experimentalista ou só fez trabalho teórico?
Fui. A primeira coisa que fiz, o meu primeiro trabalho, foi experimental e fi-lo enquanto estudante de Verão do CERN quando tinha 19 anos. Naquela altura, as experiências duravam dois ou três meses e no meu grupo, considerado grande, éramos quatro. Mas éramos capazes de fazer experiências interessantes. Isso acabou.
O que pensam os físicos teóricos sobre a descoberta do bosão de Higgs?
O valor da massa do Higgs surpreendeu alguns teóricos, mas o mais surpreendente é que esta partícula parece ser exactamente o que estava previsto pelo Modelo-Padrão. Por um lado isso é bom, mas os físicos não gostam de acertar em cheio. Quando não acertamos em cheio, isso dá-nos pistas para ir mais longe. Por enquanto, o bosão de Higgs não nos tem dado nenhuma pista sobre como ir mais além.
Esse carácter tão “normal” do Higgs não põe em causa teorias como a supersimetria?
Não, antes pelo contrário. O facto de o Higgs existir e de ter a massa que tem satisfaz os defensores da supersimetria. Contudo, isso não significa que haja uma pista concreta, que permita garantir que vamos descobrir a supersimetria já este Verão.
Para quem quer uma teoria que unifique a física, o Modelo-Padrão não chega. Mas se não há pistas sobre o caminho a seguir, o que fazer?
Temos pistas, temos. Porque existe uma teoria, a das supercordas, segundo a qual a gravidade forma parte de um conjunto onde também se incluem as outras forças.
Mas essa teoria não convence toda a gente.
O problema com essa teoria é que funciona de forma limpa e clara somente em dez dimensões espaciais e não em três. E como a realidade não é assim, ainda nos falta um passo: perceber como é possível, se a teoria das cordas estiver certa – se for a maneira certa de introduzir a gravidade como parte de um todo – que nós vivamos num espaço que tem apenas três dimensões espaciais.
Há maneiras de dar esse passo, operando aquilo a que chamamos compactificações, que fazem com que muitas dessas dimensões [adicionais] se transformem em bolinhas praticamente invisíveis. Mas existem muitíssimas maneiras de fazer essas compactificações e não é claro que uma delas seja melhor do que as outras, mais realista, para descrever este Universo preciso em que nos encontramos.
Há maneiras de resolver o problema?
Acontece que [nos aceleradores de partículas] só atingimos um certo nível de energia e que isso limita o tamanho das hipotéticas bolinhas que conseguimos detectar. Se elas existirem, mas se forem mais pequenas do que esse tamanho limite, não as conseguiremos encontrar. É como ter um microscópio que não é suficientemente potente.
O facto de conhecer a escala dessas dimensões adicionais permitiria saber qual é a compactificação mais realista?
Forneceria uma pista muito importante.
O LHC pode ajudar nisso?
Sim, pode. Agora que a energia do LHC duplicou, temos duas vezes mais hipóteses.
Mas o dobro de muito pouco é muito pouco…
Sim, mas é o dobro à mesma, é como explorar o Universo até duas vezes mais longe – ou a Terra até duas vezes mais além dos Açores. Começamos a chegar a lugares interessantes.
Mas mesmo que, depois de anos de funcionamento, o LHC não encontrasse nada de realmente revolucionário, isso representaria um grande avanço. O facto de descobrir que para além dos Açores, não há mais nada entre aqui e a América já é uma descoberta, não é? [ri-se]
Mais vale descobrir a América, mas descobrir que não há mais nada no meio do oceano do que umas quantas ilhas também permite ampliar o conhecimento.
Há contudo um problema – tanto para Colombo como para nós – no facto de voltar de mãos vazias. Como explicar então aos políticos que o facto de não termos descoberto nada é um grande avanço – e que, por isso, precisamos de ir mais longe? É mais fácil convencê-los quando temos uma descoberta. Mas a investigação científica funciona assim, é agradável encontrar coisas, mas consiste sobretudo em procurar.
Tem alguma esperança de que se venham a descobrir coisas revolucionárias com o LHC?
Tenho. Mas o que não posso fazer é apostar nisso, porque não tenho a certeza de que vou ganhar [ri-se]. Quando apostei na existência do Higgs, sabia que ia ganhar – e de facto, ganhei várias apostas com isso e com muitas outras coisas ainda. Mas acerca da próxima descoberta do LHC, não faria qualquer aposta porque não estaria a jogar pelo seguro [ri-se].
A teoria das cordas tem defensores e detractores. É a favor ou contra?
Eu acho que a teoria das cordas é muito bela – e que todas as teorias importantes da natureza foram sempre, por alguma razão, muito simples e muito belas. Por isso, a teoria das cordas é o melhor que temos, embora ainda seja francamente pouco realista. Não temos outra alternativa tão elegante.
A supersimetria é menos elegante?
A supersimetria é uma teoria muito elegante, mas prevê que as partículas supersimétricas, que não foram descobertas até agora, são “irmãs” das partículas que foram descobertas, e que possuem a mesma massa que elas. Ora, isso é falso, porque nós já sabemos que não existe um electrão supersimétrico com a mesma massa do electrão.
Como é que sabem isso?
Porque se existisse e tivesse a massa do electrão, essa partícula poderia ser gerada em casa por qualquer pessoa, num tubo catódico. Como o electrão supersimétrico nunca foi descoberto, isso diz-nos que a supersimetria é na realidade uma simetria “quebrada”. Por alguma razão, não é exacta.
Ora, todas as maneiras [teóricas] que conhecemos para quebrar a supersimetria [de forma a dar conta do facto de que nem todas as partículas têm uma “irmã” supersimétrica] são – na minha opinião – pouco convincentes. Nenhuma é assim tão bela para dizermos que tem de ser verdade.
Com as teorias fundamentais da física – por exemplo, a da relatividade – em geral basta olhar para as equações para dizer que remédio, tem de ser verdade porque é bela demais para não o ser. Mas por enquanto, isto não acontece com as teorias que permitem quebrar a supersimetria. Não nos conseguimos logo apaixonar por nenhuma delas.
E o Modelo-Padrão, não parece ser belo de mais para ser verdade?
Não, pelo contrário. É belo de mais para não ser verdade.
Já agora, eu tenho uma explicação para o facto de as teorias da natureza serem assim tão elegantes e simples. Segundo um colega meu, isso deve-se a que Deusa (porque se existir, é obviamente fêmea) é uma pessoa preguiçosa que claramente fez o Universo em cima do joelho. Se assim não fosse, não haveria crianças a morrer de fome e coisas assim. Saiu-se muito mal. Mas ela tem tido contudo o bom gosto de, aos domingos, quando oficialmente deveria estar a descansar, ler todos os artigos de física. E quando encontra um artigo irresistivelmente belo, como é todo-poderosa, decide que [o que o artigo diz] vai passar a ser verdade, não apenas no futuro, mas também no passado (ela também tem poderes sobre o passado) e faz com que a natureza concorde com essa teoria. Por exemplo, a teoria da relatividade geral de Einstein é tão elegante que quando ela a leu, em 1915, decidiu que tinha de ser verdade.
E com a supersimetria aconteceu-lhe a mesma coisa: as primeiras teorias da supersimetria, que datam dos anos 1970, eram tão elegantes que ela decidiu que tinham de ser verdade. Mas a seguir, muitos cientistas comportaram-se com a supersimetria como se se tratasse de uma religião – de algo em que tinham de acreditar porque sim. Por uma questão de fé e não de observação.
Isso aconteceu com a supersimetria?
Sim. E então ela achou – como a religião é o que mais a incomoda, por razoes óbvias [ri-se] – que aquilo já não era verdade, porque era demasiado religioso. E por isso, decidiu que por enquanto, a supersimetria não seria verdade. Talvez, quando alguém encontrar uma forma de quebrar a supersimetria que seja irresistivelmente bela, e ela ler o artigo num domingo, ela torne a mudar de opinião e a supersimetria torne a ser verdade. Mas por enquanto, estamos num período em que ela decidiu que a supersimetria não é verdade.
E foi um colega seu que lhe deu essa explicação…
Bom, isso é o que eu costumo dizer. [ri-se]
Qual é a diferença entre supersimetria e teoria das cordas, enquanto interpretação da natureza?
A teoria das supercordas [também] é supersimétrica. Mas tem muito mais “miolo”, mais estrutura do que a supersimetria. A supersimetria é uma ideia geral, é um princípio e nada mais sobre como as coisas deveriam ser. A teoria das supercordas é muitíssimo mais concreta – embora não o suficiente, por enquanto, para conseguirmos demonstrar que é verdade. Possui muito mais estrutura do que a teoria da supersimetria, que é apenas um ingrediente da teoria das supercordas.
Mas há quem diga que a teoria das cordas é que se transformou numa religião.
Enquanto as coisas não estão demonstradas, têm um aspecto religioso. Isso significa que é preciso acreditar nelas apesar de não estarem demonstradas.
E você acredita?
Eu não; eu apenas acredito naquilo que está demonstrado. Reservo a minha opinião, para não me enganar [ri-se], até as coisas ficarem esclarecidas.
Portanto, apenas acredita no Modelo-Padrão e pouco mais.
No Modelo-Padrão e pouco mais. Também acredito na relatividade de Einstein.
Duas teorias que ainda não foi possível unificar.
Ainda não, mas elas estão ali.
Qual é que acha que foi o seu maior contributo para a física teórica ao longo da sua carreira?
Por exemplo, na teoria das interacções fortes – a chamada cromodinâmica quântica –, há uma coisa parecida com a carga do electrão, a que se designa de “carga de cor” dos quarks, os constituintes dos protões e dos neutrões. Ora, um ingrediente importante dessa teoria, a “liberdade assimptótica”, é que a carga de cor diminui quando a resolução [a energia] utilizada para observar as partículas aumenta.
O facto que algo tão fundamental como uma carga mude conforme a resolução com a que fazemos as observações dá origem a uma nova constante da natureza, que é a escala [de energia] na qual as coisas mudam: a constante cromodinâmica [de acoplamento].
A primeira pessoa que mediu a constante cromodinâmica – embora não sendo experimentalista –, o primeiro a extrair essa constante fundamental da natureza a partir dos dados fui eu. Nesse sentido, sou o único físico teórico a ter medido [experimentalmente] uma constante fundamental da natureza [ri-se]. Não é algo que os meus colegas valorizem muito, porque a posteriori, toda a gente diz “bah, isso é óbvio”. Mas no fundo, só se torna óbvio quando alguém o faz…