terça-feira, 27 de julho de 2010

A cultura científica

Uma entrevista ao Físico, Professor Carlos Fiolhais

http://dererummundi.blogspot.com/2010/07/sobre-cultura-cientifica.html


P- Que características definem o conceito de cultura científica em Portugal?

R- A ciência é universal e o conceito de “cultura científica” é o mesmo aqui e em qualquer parte do mundo: a expressão refere-se à parte da vasta cultura humana que tem a ver mais de perto com o empreendimento científico, que de uma forma muito resumida pode ser entendido como a aquisição de conhecimento sobre o mundo. Afirmar que a “ciência é parte da cultura” é ultrapassar a famosa questão das “duas culturas”, a literária e a científica, que C.P. Snow colocou em 1959. Não há duas culturas, mas uma só, sendo a ciência parte inalienável dela. A posse de cultura científica é hoje considerada uma condição de cidadania, isto é, de pertença à sociedade. Mas pergunta-me por Portugal. O nosso país caracteriza-se por uma cultura científica ainda pouco generalizada, resultado de um atraso no cultivo da ciência e na disseminação dela aos cidadãos. Precisamos de mais cultura científica de modo a evitar que, entre nós, muita gente pense que a ciência e a cultura estão divorciadas.

P- Quais os principais elementos que diferenciam a cultura cientifica de outras variantes da cultura?

R- Uma das marcas maiores da ciência é o reconhecimento do erro. Ora, se um resultado científico pode estar errado, julgo que nunca se poderá dizer o mesmo de uma obra de arte. Os critérios de validação da ciência – principalmente o uso do raciocínio lógico e a concordância com a observação ou a experiência - são decerto diferentes dos de outras actividades humanas. Apesar disso, outras áreas da cultura, por muito distintas que sejam da ciência, podem e devem cruzar-se com ela, para enriquecimento mútuo. As artes em geral, que a generalidade dos cidadãos associa mais rapidamente à cultura, constituem uma dessas áreas, abrangendo subáreas como a literatura, as artes plásticas, as artes de palco, etc. Cada vez mais se tem assistido à intersecção da cultura artística com a cultura científica: por exemplo, obras de arte buscam inspiração na ciência e a ciência reinvindica o uso de elementos ou critérios estéticos. Julgo que nessa aproximação não há qualquer risco de confusão ou sincretismo. Um cientista precisa de ter imaginação, mas a sua imaginação não pode ser tão livre como a do artista, tem de estar contida na “camisa de forças” que é a realidade.

P- Como qualifica o actual estado da cultura científica em Portugal?

R- Melhorou muito nos últimos anos, com o investimento enorme que houve na ciência e na sua difusão pública no último quarto de século. Mas o ponto de partida era muito baixo. Assim, há inquéritos internacionais recentes de sociologia da ciência que mostram que os portugueses têm na sua relação com a ciência dificuldades maiores do que as de outros povos europeus. Se muito foi feito, muito há ainda a fazer neste domínio.

P- O que acha que pode ser feito para melhorar a aprendizagem das ciências e a divulgação de cultura científica em Portugal?

R- O ensino da ciência deve ser feito em larga medida na escola e aí tem residido a nossa mais importante falha. O ensino formal da ciência, como é revelado por indicadores internos (resultados dos exames de disciplinas científicas) e por comparações internacionais (PISA e TIMMS), não tem revelado progressos satisfatórios. Ora essa situação não pode ser inteiramente colmatada por via do ensino informal da ciência que sempre se efectua quando há divulgação da cultura científica (através dos média, dos museus e centros de ciência, etc.). Arriscaria dizer que, nos últimos anos, progredimos mais no ensino informal do que no ensino formal da ciência, mas o progresso tanto de um modo como doutro não foi suficiente. Importa, por isso, enfrentar em particular o problema da ciência na escola, começando, na minha opinião, o mais cedo possível. O recurso à experimentação no ensino básico (e, antes disso, mesmo no jardim-escola) é uma via que nos falta percorrer de uma forma mais convicta e eficaz. Para isso, é mister formar mais adequadamente professores desse nível de ensino, melhorar currículos e fornecer bons materiais. Claro que, ao fazer isto na escola, tem de se continuar a fazer tudo aquilo o que já se faz fora da escola, como acontece nas actividades do Ciência Viva, e sempre que possível em coligação com a escola.

P- Qual é o papel do governo na divulgação do conhecimento e da cultura científica?

R- A causa da ciência e da cultura científica é uma causa pública. Diz, portanto, respeito ao governo no qual, em democracia, delegamos a organização da escola pública e dos meios públicos de promoção da cultura científica. Sem investimento público não podemos esperar que a ciência cresça e a cultura científica avance. É também para isso que pagamos os nossos impostos e participamos em eleições. Mas essa delegação não nos isenta das nossas responsabilidades. A causa da ciência diz respeito às empresas e outras instituições privadas, assim como, em geral, aos cidadãos, na medida dos seus saberes e possibilidades. Parte substancial do investimento em ciência e cultura científica deve ser não governamental. Nas sociedades mais avançadas as empresas e os cidadãos dispõem de amplo espaço de iniciativa e podem envidar esforços que se somam ao esforço dos governos. Apesar de alguma aproximação no passado mais recente, Portugal não alcançou ainda um estádio de desenvolvimento suficiente para que o investimento privado na ciência exceda largamente o público, como acontece por exemplo nos países do Norte da Europa.

P- Qual foi o impulso dado à cultura científica pelo programa Ciência Viva?

R- A Agência Ciência Viva tem concretizado vários projectos, que confluem todos eles na defesa e alargamento da cultura científica. Sem o Ciência Viva estaríamos muito piores. Foi uma das boas ideias que frutificaram entre nós nos últimos tempos e só espero que continue o bom trabalho que tem realizado. Em Coimbra, temos desde há pouco tempo o Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho a funcionar em pleno, em homenagem ao grande poeta e divulgador de ciência.

P- Qual foi o papel da “Física Divertida” no panorama nacional da divulgação científica?

R- “Física Divertida” é um livro que escrevi em 1991 e que teve uma sequela, há três anos, com “Nova Física Divertida”. Nesses livros apenas pretendi contar algumas histórias da física, clássica primeira e moderna depois, de uma maneira compreensível para um público alargado, na tradição de outros livros de divulgação científica. Se o consegui ou não, não sei. Não posso ser juiz em causa própria.

P- Acha que existe um público alvo para a cultura científica, ou assimilação desta é universal e acessível a todas as faixas etárias e classes sociais?

R- A cultura científica deve ser de todos. Em particular, é para todas as idades, e é tanto para pobres como para ricos. Claro que os mais jovens estão numa fase da vida mais particularmente susceptível à aprendizagem, na fase em que frequentam a escola. E claro que os pobres ficarão ainda mais pobres se, na escola e fora dela, não lhes for proporcionada a cultura científica. Deve haver uma atenção especial tanto para os mais jovens como para os mais pobres.

P- À luz do conhecimento cientifico hoje existente, e considerando que o progresso é imparável, quais são os limites impostos à ciência pela ética?

R- A ciência tem de ser acompanhada por consciência, isto é, não pode desenvolver-se sem a ética. Pode-se fazer muita coisa na investigação científica, mas nem tudo se deverá fazer. Os limites devem ser impostos não apenas pelos próprios cientistas, mas pela sociedade em geral. Esses limites têm de ser continuamente pensados e redefinidos.

P- Se alguém lhe dissesse que é possível alcançar a verdade absoluta que resposta daria?

R- É possível, de facto, alcançar o conhecimento, como mostra toda a história da ciência. Quanto à “verdade absoluta”, não sei o que é isso. A ciência é cumulativa, isto é, cada vez se sabe mais e o que se sabe de novo não prejudica tudo o que se sabe, mas apenas uma pequena parte. Como este processo tem sido contínuo, é difícil defender, em ciência, o conceito de “verdade absoluta”. Mas é perigoso cair na contingência e no relativismo: há conhecimentos que foram adquiridos e que não vão mudar, como, por exemplo, a Terra é o terceiro planeta mais distante do Sol, que o nosso corpo é feito de células, etc.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Uma mente que Brilha - a entrevista


A sua mente só pode ser brilhante - uma beautiful mind, como reza o título original da aclamada biografia que a jornalista Sylvia Nasar publicou em 1998, e que por sua vez inspirou, em 2001, o filme homónimo de Ron Howard, com Russell Crowe no papel principal. Só assim é que se explica a extraordinária história de John Nash.

Nascido em 1928 nos Estados Unidos, Nash doutorou-se em 1950 pela Universidade de Princeton com uma tese de apenas 27 páginas que viria revolucionar a área matemática da Teoria dos Jogos. O "equilíbrio de Nash", que ele definiu nessa altura, faz hoje parte do vocabulário corrente desta disciplina científica.

A partir de finais dos anos 50, Nash desenvolveu esquizofrenia paranóide. A sua vida familiar e a sua carreira como matemático (já era considerado um génio por alguns) foram tragicamente truncadas. Perdeu o emprego, divorciou-se da mulher, Alicia, foi hospitalizado, medicado e tratado à força. Tornou-se um espectro de si próprio. Mesmo assim, durante os raros intervalos livres de delírio, continuou a fazer matemática de grande qualidade.

Nos anos 1970, Alicia voltou a acolhê-lo em sua casa (mais tarde voltariam a casar) e Nash regressou a Princeton. Passava o tempo a gatafunhar misteriosos códigos numéricos nos quadros e tornou-se conhecido como o "fantasma de Fine Hall" (o edifício do departamento de Matemática).

A partir de finais dos anos 1980, depois de 30 anos mergulhado nos delírios da esquizofrenia, começou a melhorar e em 1994 recebeu o Prémio Nobel da Economia.

Nash esteve esta semana em Portugal para participar na 24.ª Conferência Europeia de Investigação Operacional, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Na segunda-feira à tarde, deu uma conferência na Aula Magna e, no sábado anterior, falou ao P2 sobre o seu singular percurso de vida e o seu trabalho científico passado e actual.

Revê-se na personagem interpretada por Russell Crowe no filme Uma Mente Brilhante, de Ron Howard? A história do filme é próxima da verdade ou muito afastada dela?

O filme é uma ficção selectiva, mas não está completamente afastada da realidade. Alicia e eu fomos consultados - isso fazia, aliás, parte do contrato do filme. Portanto, eles tinham licença artística, mas isso não tornou a história completamente fictícia.

Não diria que me revejo nele. O filme não diz absolutamente nada sobre os meus anos de formação, antes da minha chegada à Universidade de Princeton.

O seu contributo para a Teoria dos Jogos foi muito importante. O que é a Teoria dos Jogos?

A expressão "teoria dos jogos" é uma descrição popular. A mesma área científica poderia ter tido outro nome. A Teoria dos Jogos foi desenvolvida com a publicação de um livro [em 1947], por John von Neumann e Oskar Morgenstern, intitulado em inglês Theory of Games and Economic Behavior (Teoria dos jogos e Comportamento Económico), que se tornou muito influente. Mas Von Neumann já tinha publicado na Alemanha em 1928 - o ano em que eu nasci - um artigo intitulado Zur Theorie der Gesellschaftsspiele, que significa "jogos sociais". E antes disso, tinha sido publicado em França um artigo com théorie du jeu no título. Von Neumann também publicou uma nota [em 1928] na Comptes Rendus de l"Académie des Sciences onde falava de théorie des jeux. Foi assim que o nome ficou.

É algo que permite a modelização matemática de comportamentos sociais e económicos?

Sim, mas com a ênfase nas escolhas alternativas e na ideia de estratégia - uma palavra de origem grega que significa a escolha de uma política. Há estratégia no xadrez e noutros jogos. Pode haver uma estratégia no futebol.

Só que, aí, as estratégias têm como objectivo fazer com que o outro perca.

É o que chamamos um jogo de "soma zero". Todos os jogos de entretenimento e desportivos são desse tipo. Também podem ser de "soma constante", com um certo benefício para ambos os lados, como a final de um Mundial de futebol - mas onde o vencedor beneficia mais do que o outro.

E também há jogos onde todos perdem...

Sim, são os jogos de soma negativa. Por exemplo, podemos imaginar uma situação em que uma prisão obriga prisioneiros a entrar num duelo onde apenas um irá sobreviver.

No filme, há uma cena onde a sua personagem está à procura da solução para o problema dos jogos ditos não-cooperativos. Estão num bar, há um grupo de raparigas e o protagonista percebe de repente que...

Deixe-me interromper. A teoria dos jogos no filme não está nada bem apresentada. O argumentista não era um perito em teoria dos jogos.

O seu contributo para a teoria dos jogos é hoje conhecido como "equilíbrio de Nash" e mudou a maneira de fazer teoria dos jogos aplicada à economia. O que é o equilíbrio de Nash?

O equilíbrio de Nash define-se em termos de estratégias, do conceito de estratégia do jogador. Temos dois, três ou mais jogadores. Cada jogador tem um número finito de acções ou estratégias "puras" pelas quais pode optar, fazendo isto ou aquilo. Mas também existem estratégias mistas, que são planos baseados numa mistura de estratégias puras, em que uma certa probabilidade de ser escolhida é atribuída a cada estratégia pura.

Assim, se um jogador tiver três escolhas possíveis, três acções puras entre as quais optar, poderá optar por uma delas com uma probabilidade de 20 por cento, pela segunda com 50 por cento e pela terceira com 30 por cento, o que dá 100 por cento. E o conjunto das estratégias mistas dos jogadores apresenta um equilíbrio quando nenhum dos jogadores pode mudar de estratégia e aumentar os seus benefícios. O benefício tem de ser calculável a partir da estratégia mista em questão. Calcula-se o benefício previsto para todos os jogadores e cada jogador olha para a sua fatia.

Quando duas empresas competem pelo mesmo mercado, usam a sua teoria para ver se compensa produzir mais ou menos, ou subir ou descer os preços?

Essa é considerada uma óptima área de aplicação da teoria. Existe uma abordagem clássica que é equivalente a uma análise de teoria dos jogos em certos casos especiais. É o chamado equilíbrio de Cournot. É um conceito certamente mais antigo do que o equilíbrio de Nash, mas é um caso particular. Augustin Cournot, economista francês do século XIX, considerou o caso em que duas empresas produziriam algo para o mesmo mercado - dois grandes produtores de leite, por exemplo.

Se uma dada quantidade de leite é produzida, pode ser vendida por um certo preço; se produzirem mais, não vão conseguir vender o leite por um preço tão bom. Por outro lado, se produzirem menos, o preço sobe, mas também há um limite. E se produzirem muito pouco, pode ser preciso importar leite.

Pode então existir um equilíbrio de Cournot em que cada um deles produz uma certa quantidade do produto - e em que nenhum deles pode produzir mais ou menos e obter uma vantagem. Mas, aqui, trata-se de um jogo não-cooperativo com dois jogadores onde o equilíbrio reside numa estratégia pura.
http://jornal.publico.pt/noticia/15-07-2010/a-minha-mente-tem--a-historia--que-tem-19827222.htm

terça-feira, 13 de julho de 2010

Neurociências, Humanidade e Filosofia



"As neurociências reforçam a visão humanista"

Para este conhecido cientista francês, quanto melhor for o nosso conhecimento do cérebro humano através das neurociências, maior será a nossa abertura em relação à espécie humana. Já lá vão os tempos em que afirmar este tipo de coisas era anátema. Por Ana Gerschenfeld (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia)

Nos anos 1980, Jean-Pierre Changeux, especialista de neurobiologia molecular hoje com 74 anos, escreveu um livro, O Homem Neuronal, que se tornou um best-seller mundial, onde desmontava a noção, em voga na altura, de que o cérebro, com os seus impulsos químicos e eléctricos, era uma simples máquina - um computador. Para ele, perguntas como "O que é ser humano? O que é a consciência? O que é o pensamento? A verdade? A beleza? exigiam respostas menos mecanicistas, mais "humanas", mais multidisciplinares - exigiam a construção de uma ponte entre o puramente neuronal e o nosso universo cognitivo, mental.

O livro gerou controvérsia - o que, volvidas várias décadas e muitos avanços das neurociências e das ciências cognitivas em geral, parece quase incompreensível. Hoje, sabemos quão importantes são as emoções - que os computadores claramente não possuem - para um normal funcionamento da mente humana.

Changeux também se interessou sempre pelas questões éticas ligadas às neurociências. Afirma que é possível construir "uma neurociência da pessoa humana", para retomar uma parte do título da conferência que proferiu em Lisboa, há umas semanas, no âmbito de um colóquio franco-português sobre ética e neurociências, promovido pela Embaixada de França e o Instituto Gulbenkian de Ciência. E espera que um dia os seres humanos consigam viver em maior harmonia entre si - uma visão que, como confessou ao P2, pode pecar por optimismo...

No passado, temas como o sentido moral ou a espiritualidade não eram objecto de estudo das neurociências. O que é que levou a uma mudança tão radical?

A mudança foi fruto de uma longa evolução. Nos anos 1970, os progressos da biologia molecular permitiram uma primeira revolução ao federar áreas de estudo tão diversas como a psicologia, a sociologia, a anatomia cerebral, a fisiologia cerebral, a farmacologia, a genética, etc. Verificou-se uma espécie de enraizamento da fisiologia nervosa na biologia molecular e, ao mesmo tempo, foi possível relacionar comportamentos com estados fisiológicos de conjuntos de neurónios. Começou-se pelo estudo de sistemas simples, como a aplísia [uma lesma] ou o caracol e, progressivamente, passou-se para o ratinho e para sistemas mais complexos e para o ser humano. Isso aconteceu graças aos avanços das ciências cognitivas - com estudos de psicologia da percepção, da linguagem, do acesso à consciência - e graças à sequenciação do genoma humano, que permitiu relacionar a variabilidade genética com a predisposição para doenças neurológicas e psiquiátricas.

Paralelamente, as tecnologias de visualização permitiram estabelecer relações entre a actividade de conjuntos de neurónios no nosso cérebro e estados psicológicos - e perceber a importância de certos traços do cérebro humano que são geneticamente determinados. Houve assim aspectos da psicologia, da antropologia, da cultura, que passaram a ter a ver com as neurociências.

Começam a existir modelos e dados sobre a internalização da cultura e a sua produção - isto é, sobre a forma como os circuitos cerebrais se modificam ao longo do desenvolvimento, da aprendizagem da oralidade e da escrita, do estabelecimento de regras de conduta moral, da criação artística.

Estão a surgir novas sínteses e penso que, no que respeita às relações das neurociências com a ética, a estética, a epistemologia, vislumbram-se programas de investigação que irão desenvolver-se nos próximos anos. Já não se trata de filosofia - sem querer criticar a filosofia, que acho que continua a ser necessária. Já não estamos no domínio do discurso, mas no domínio da experimentação e da pesquisa de dados objectivos.

Há uns anos, tê-lo-iam acusado de reducionismo. Hoje, já não. Porquê?

Fui durante muito tempo alvo de críticas dessa natureza. A palavra reducionismo tinha uma conotação muito pejorativa. Havia quem pensasse que eu estava a incluir neste campo de pesquisa tudo o que era do domínio cultural. Através de vários livros, tentei mostrar que não era nada disso. O Homem Neuronal, que escrevi em 1983 e que foi traduzido para inglês em 1985 [e publicado em Portugal pela Dom Quixote no mesmo ano], provocou um choque porque era, a meu ver, a primeira síntese das disciplinas que vieram integrar as neurociências. Foi uma primeira tomada de consciência de que uma nova ciência estava a emergir. Acho que o meu livro foi difícil de aceitar porque, pelo menos nas nossas sociedades ocidentais, existe uma visão dualista do corpo e da mente. Mas sempre houve filosofias monistas, desde os atomistas da Antiguidade até Spinoza, Diderot e muitos outros.

Tem havido sem dúvida uma evolução da reflexão, talvez a começar pelos filósofos e os media, e uma maior aproximação do público ao mundo das neurociências.

Os media?

Sim, os media tiveram um papel importante. Vimos aparecer as palavras "neurónio" e "sinapse" em jornais de grande tiragem. Mas, pelo menos em França, o reflexo dualista continua presente. Não me parece que o público, na sua totalidade, tenha ficado convencido com o nosso ponto de vista.

Somos o produto dos nossos genes e, ao mesmo tempo, a nossa personalidade depende da arquitectura dos nossos circuitos neuronais, moldados pela nossa história pessoal.

É o velho debate do inato e do adquirido que ressurge aqui?

Os genes conferem aos seres humanos traços comuns que assinalam a nossa humanidade. Mas os genomas do ratinho, do chimpanzé e do homem são muito semelhantes e, por enquanto, não sabemos realmente quais são as diferenças fundamentais que fazem com que o nosso cérebro tenha evoluído para uma maior complexidade do que os cérebros dessas outras espécies.

Para mim, de longe o factor mais importante desta evolução não linear é que o cérebro humano continua [ao contrário do que se pensava no passado] a desenvolver-se até aos 15 ou 20 anos de idade e é ao longo desse desenvolvimento que a conectividade entre as células nervosas se estabelece - para além de que pode também haver produção de novos neurónios. Assim, à base genética vem juntar-se uma profusão epigenética que participa no estabelecimento da conectividade neuronal.

No fundo, isto faz com que a problemática do que é inato e do que é adquirido esteja ultrapassada. Há, praticamente desde o início, na maneira como os genes se vão expressar para compor a arquitectura do nosso cérebro, fenómenos epigenéticos. E a consequência disso é que cada indivíduo é diferente dos outros, tanto no plano genético como, sobretudo, no plano epigenético. A vida de cada um difere da dos outros e gera-se assim uma singularidade da pessoa humana.

Mas isso deixa espaço para o livre arbítrio?

A questão do livre arbítrio é uma questão filosófica e não me sinto habilitado a falar dela. Certos filósofos, como Spinoza, negam a existência do livre arbítrio. Para Spinoza os homens pensam que são livres na medida em que ignoram as causas que os determinam.

O que penso que possuímos é o que eu chamaria um "espaço de trabalho neuronal consciente" - arquitecturas neuronais que permitem a existência da consciência, onde se produz uma espécie de globalização da visão do mundo, no qual somos capazes de simular acções sobre o mundo. Quando sou entrevistado, posso responder de várias maneiras a uma pergunta e procuro a mais adequada através de mecanismos de selecção. Quando faço isso - e não sei se para mim isso constitui uma definição da liberdade -, essas escolhas são, para dar razão a Spinoza, determinadas pela minha experiência passada, mas tenho, apesar de tudo, a possibilidade de escolha.

Acho que esta visão da consciência e da produção de estados mentais não está em contradição com os filósofos que consideram que existe uma certa liberdade nos nossos comportamentos. Mas, pessoalmente, inclino-me muito mais para a visão de Spinoza. Penso que temos a possibilidade de escolher, mas as nossas escolhas são, em última análise, determinadas pelas nossas predisposições e pela nossa vivência.

A aceitação desse ponto de vista pode traduzir-se numa maior tolerância para com os outros?

Quanto melhor for o nosso conhecimento do cérebro humano, maior será a nossa abertura em relação à espécie humana e à sua diversidade e melhor conseguiremos compreender o que torna os indivíduos diferentes, as diferenças entre as reacções dos indivíduos numa dada situação e o que cria antagonismos entre indivíduos nos grupos humanos e entre grupos humanos.

A noção de epigénese é aqui fundamental, porque há obviamente um aspecto circunstancial no facto de uma pessoa nascer numa família lusófona católica ou numa família chinesa confucionista. E o ambiente familiar, escolar e social vão fazer surgir, na nossa organização neuronal, o que eu chamo "circuitos culturais". O exemplo mais típico são os circuitos envolvidos na leitura e na escrita - que foram, aliás, bem estudados em Portugal por Alexandre Castro-Caldas, que mostrou que existiam diferenças notáveis no cérebro de pessoas iletradas em relação ao de pessoas que sabem ler e escrever.

Essas marcas culturais cerebrais, que são reais, são muito pouco reversíveis. Aprendemos uma língua em criança e, se mudarmos de ambiente linguístico, podemos aprender uma segunda língua. Mas subsiste um sotaque, que não é senão o vestígio, muito profundo, dos primeiros circuitos culturais que se formaram no nosso cérebro aquando da nossa primeira aprendizagem da língua oral.

As bases neuronais das diferenças culturais apenas são reversíveis na geração seguinte, através da educação. E é por isso que é muito importante que a educação seja laica, permitindo a cada um ter os seus sistemas linguísticos, de crenças, etc., mas, ao mesmo tempo, fazendo com que o outro apenas seja diferente de nós ao nível de uma espécie de tradição familiar ou da sua experiência pessoal. Isso torna-nos muito mais compreensivos e tolerantes, uma vez que o outro não é responsável por diferenças que foram criadas pelas circunstâncias da sua vida. Neste aspecto, acho que as neurociências reforçam a visão humanista.

A utilização de substâncias que permitem melhorar o desempenho mental, do tipo modafinil, ritalina, etc., tem-se generalizado. Acha que se trata de doping?

Quando eu era presidente do comité de ética francês, debateu-se muito a questão do doping no desporto, e não apenas no plano do desempenho muscular, mas também ao nível da motivação, das funções cerebrais. E era curioso ouvir os médicos da medicina do desporto dizer que, quando um atleta tem dificuldade em continuar o treino, ou em manter a sua performance, é legítimo fazer o necessário para que recupere o seu nível de desempenho. Isso justifica de certa maneira o doping. O comité de ética adoptou uma posição muito firme, vincando que o primeiro acto terapêutico nesses casos é fazer com que o atleta pare de tentar ir para além das suas forças. No caso da performance cerebral, é um pouco a mesma coisa. A minha posição nesta matéria é clara: ou a pessoa sofre de dificuldades reais - por exemplo, no caso de uma doença de Alzheimer ainda no início - e temos o dever de a ajudar a ultrapassar e controlar os seus problemas; ou a pessoa funciona normalmente - e o medicamento é uma droga, é doping.

Há quem pretenda utilizar as neurociências para fazer neuromarketing, influenciando as escolhas das pessoas. O que pensa disso?

É uma corrupção do conhecimento. Não é o objectivo das neurociências. É uma situação que se pode verificar e que exige uma vigilância ética, para que os avanços do conhecimento não sejam desviados do seu objectivo. O objectivo da ciência é ajudar os seres humanos a ter uma vida mais harmoniosa, mais agradável, de maior qualidade. Infelizmente, a ciência pode por vezes ser utilizada para discriminar, para controlar artificialmente os comportamentos. Nós, cientistas, temos o dever de o evitar.

Vai ser possível um dia ler o pensamento? Vamos conseguir conhecer as decisões das pessoas antes de elas as tomarem?

Sim. Já é possível identificar as intenções motoras de alguém antes de essa intenção se traduzir num gesto motor. Da mesma maneira, podemos tentar identificar "assinaturas" neuronais de conceitos particulares. É uma possibilidade que está a ser testada. Não me parece impossível identificar o tipo de representação que cada um de nós tem na sua subjectividade, por assim dizer. Também a este nível é preciso desenvolver uma reflexão ética em torno do respeito da vida privada de outrem. Só podemos fazer este tipo de experiências com o consentimento da pessoa e o problema é o de saber se será um dia possível fazer este tipo de "leitura" sem consultar a pessoa visada. Isso colocaria um grave problema ético.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

O Conhecimento Científico em Mudança


O resultado, anunciado amanhã na “Nature”, surpreendeu os seus autores (entre os quais oito portugueses)
O protão é mais pequeno do que se pensava e por enquanto ninguém sabe porquê
07.07.2010 - 18:49 Por Ana Gerschenfeld
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“Das três uma: ou a teoria está incompleta e há qualquer coisa que ela não consegue prever; ou os cálculos estão errados; ou o valor de uma das constantes mais bem conhecidas da física está errado”, diz-nos pelo telefone Joaquim Santos, da Universidade de Coimbra. A teoria de que fala é a Electrodinâmica Quântica, ou QED, um dos pilares da física, que descreve as interacções entre a luz e a matéria e é uma das mais bem sucedidas na previsão das propriedades dos átomos. Os cálculos de que fala são aqueles que, a partir dessa teoria, permitem calcular o tamanho (o raio) do protão, um dos constituintes de base dos átomos. A constante de que fala é uma constante física fundamental, chamada constante de Rydberg e cujo valor também está ligado ao tamanho do protão.

A teoria e a experiência não batem certo (CREMA collaboration/PSI)

Por que é que uma destas três coisas poderá ter um problema? Porque uma equipa internacional de cientistas, entre os quais a de Joaquim Santos (onde se incluem também investigadores da Universidade de Aveiro) publica hoje na revista “Nature” um resultado que mostra que o protão poderá ser mais pequeno do que se pensava.

Hoje em dia, o raio do protão é conhecido com uma precisão de apenas um por cento, principalmente através da espectroscopia feita ao átomo de hidrogénio (que não é senão um protão com um electrão à volta). E o que os 32 investigadores da equipa – do Instituto Max Planck, na Alemanha; do Instituto Paul Scherrer e do ETH Zurique, ambos na Suíça; do Laboratório Kastler Brossel em Paris; dos EUA e de Taiwan; e de Coimbra e Aveiro – pretendiam era aumentar essa precisão de um por cento para um por mil, acrescentando mais uma casa decimal ao valor oficial em vigor, que é de 0,8768 femtometros (milésimos de bilionésimo de metro). “Precisávamos de melhorar a precisão porque [as previsões] da teoria QED estão limitadas pela precisão do raio do protão”, explica Joaquim Santos. Só que, quando o mediram, o valor que obtiveram estava vários pontos percentuais abaixo do previsto. O novo valor, obtido através de um dispositivo experimental novo e muito sofisticado, é de 0,84184 femtometros – ou seja, cerca de quatro por cento mais pequeno.



O resultado foi obtido há um ano – a 5 de Julho de 2009 – mas demorou este tempo todo a confirmar. O sucesso da experiência, na mira dos especialistas desde os anos 1970, deveu-se a vários factores. Passou pela capacidade de produzir uma forma “exótica” de hidrogénio – um hidrogénio onde o electrão é substituído por um muão (uma partícula muito instável de igual carga mas 200 vezes mais pesada que o electrão, que torna as medições mais precisas). Hoje, tornou-se possível produzir hidrogénio muónico com um tempo de vida de quase um microssegundo, um período de tempo suficiente para o bombardear com impulsos laser de alta potência. O sucesso passou aliás também pelo desenvolvimento de lasers ultra-rápidos e pela melhoria dos detectores de raios-X emitidos pelos muões – da responsabilidade da equipa portuguesa. A experiência foi realizada no Instituto Paul Scherrer, “que tem o feixe de muões mais potente do mundo”, diz ainda Joaquim Santos. E os sistemas de lasers foram desenvolvidos pelas equipas francesa e alemã.

Mas apesar disso, o dispositivo não funcionou à primeira. “Em 2003, 2005 e 2007, não conseguimos”, prossegue o investigador. Pensaram que o problema vinha dos lasers, mas estavam enganados: “Estávamos a olhar para o sítio errado.” Por outras palavras, estavam a sintonizar os lasers nas frequências erradas – como um operador de rádio que não ouve nada porque se enganou na frequência de transmissão. Por isso, em 2009, varreram várias frequências – e ai sim, detectaram o sinal que procuravam há dez anos.

Próximas etapas: fazer o mesmo com deutério muónico (o deutério é uma forma de hidrogénio cujo núcleo inclui um neutrão) e com hélio muónico (dois protões e dois electrões, para além de neutrões).

O que acontecerá se os cálculos, que os teóricos vão agora ter de rever, estiverem certos? Se for o caso de a teoria estar incompleta, isso poderá dar lugar “a uma nova física, a novos conhecimentos”, responde Joaquim Santos. “Se a teoria estiver incompleta, significará que pensávamos que sabíamos tudo e chegámos à conclusão de que há qualquer coisa que ainda não sabemos.”

domingo, 4 de julho de 2010

A justiça enquanto aplicação política do pensamento ético - os direitos de 1.ª, 2.ª e 3.ª geração

Os direitos de 1.ª, 2.ª e 3.ª geração numa sociedade e sistema democrático.

A política traduz no direito positivo valores que a nossa civilização/sociedade considera como essencias. O que é considerado essencial nem sempre é objecto de acordo e não é hoje o mesmo que há duzentos anos. Assim, a evolução do direito como manifestação política do pensamento humano sobre valores e sistemas de organização política traduz a evolução do pensamento filosófico, ético e político, suportando-se igualmente nos desenvolvimentos científicos, técnicos, económicos das sociedades.

Apesar de haver variação política e filosófica podemos encontrar uma preocupação política comum nas sociedades com sistemas democráticos: como legislar e governar de forma a garantir o bem estar de cada homem, hoje e no futuro?


Os direitos de 1.ª geração, direitos civis e políticos, consubstancializam-se no direito à livre expressão, à associação, à propriedade, ao exercício político, etc. Os valores subjacentes a todos eles são o da cidadania e liberdade individual, bem como a igualdade de todos a esses direitos e valores. Estes direitos e valores são garantidos pelo que designa como estado liberal ou democracia liberal .

Mas este estado evolui para o que se designa como estado social (séc. XX, sobretudo no pós-2.ª guerra mundial) na medida em que se constatou politicamente que para garantir a igualdade de oportunidades, o direito ao exercício pleno da cidadania e o direito à dignidade humana, não bastava a garantia formal de direitos, mas era necessário estabelecer direitos sociais, económicos e culturais (direitos de 2.ª geração), que promovessem junto dos mais desfavorecidos em riqueza e capacidades o desenvolvimento de condições para o harmonioso desenvolvimento de cada um. Desta forma estariam, por exemplo, garantidos os direitos à saúde, à educação, ao subsídio de desemprego, aos bens culturais como teatros, cinemas, bibliotecas.
Os direitos de 2.ª geração visam estabelecer, também, uma sociedade justa, desenvolvendo a justiça social. Este conceito tem variações no interior do sistema democrático, consoante as ideologias e princípios políticos de cada partido político. Também têm variações as formas como se concretiza o estado social, se deve ser mais providente ou menos, se os seus serviços devem ou não ser fornecidos pelo estado ou pela sociedade civil.

O estado liberal ou estado social é antes de mais um estado de direito. Isto significa que o estado além de garantir a igualdade de todos perante a lei e o direito à participação cívica e politica dos cidadãos, é um estado que se submete ao direito. Esta é uma característica, juntamente com a separação de poderes (legislativo, executivo e judicial), dos sistemas políticos democráticos.

Os direitos de 3.ª geração emergem em função da globalização das preocupações - e procuram dar resposta aos problemas mundiais como é o caso actual do aquecimento global.