sexta-feira, 16 de abril de 2010

O que é o Senso Comum? - 3

O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na acção e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajectórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objectivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e linguística. O senso comum é superficial, porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para a produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a acção que não produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade.”
B. Sousa Santos, Introdução a uma Ciência Pós-Moderna, Edições Afrontamento

terça-feira, 13 de abril de 2010

O que é o Senso Comum ou conhecimento Vulgar? - 2

- um conhecimento espontâneo e natural;
- um conhecimento empírico;
- um conhecimento sem conceptualização e sem sistematização racional;
- um conhecimento condensado colectivamente;
- um conhecimento concentrado nas tradições e no saber-fazer;
- um conhecimento que nos dá regras e orientações úteis;
- um conhecimento que permite a sobrevivência e a convivência;
- um conhecimento que não sabe como sabe;
- um conhecimento que tem na eficácia a sua verdade;
- um saber pragmático e securizante;
- um saber avesso à mudança;
- um saber que evolui com o erro;
- um saber acrítico.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Da Conjectura ao Teorema: o processo de validação em Matemática




Grigory Perelman

Um génio matemático acaba de ser contemplado com um prémio de um milhão de dólares por ter resolvido um dos sete problemas mais difíceis da matemática, mas é provável que o recuse. Loucura? Aparentemente não. Pura desilusão com a matemática e os matemáticos. Afinal, não é a primeira vez que Perelman foge dos holofotes da fama a sete pés.
Por Ana Gerschenfeld

Quando, há uns dias, um jornalista ligou para o telemóvel de Grigory Perelman a tentar fazer-lhe umas perguntas acerca do prémio que tinha acabado de lhe ser atribuído, o matemático russo de 43 anos respondeu-lhe simplesmente: "Pare de me incomodar, estou a apanhar cogumelos."

Visto pelo prisma das descrições que dele circulam há anos na imprensa e na Net - algumas vindas dos escassíssimos privilegiados que o entrevistaram pessoalmente, mas a maioria baseada em conversas com antigos colegas ou mesmo com os vizinhos do prédio onde mora -, Perelman é a imagem escarrapachada do "génio maluco". Barba comprida e cabelo desgrenhado, unhas sem cortar há meses, olhar intenso, magro, mal vestido, de higiene duvidosa - como se tivesse a dada altura esquecido que a vida em sociedade requer algumas concessões básicas do lado da aparência e da indumentária. O que não é surpreendente: há quatro anos que Perelman vive num estado de quase reclusão no apartamento modesto que partilha, num bairro não menos modesto de São Petersburgo, com a sua mãe idosa.

Não é a primeira vez que Perelman fica sob os holofotes da fama científica - e também não é a primeira vez que foge deles a sete pés. Em 2006, foi recompensado pelo seu trabalho com a Medalha Fields, considerada o Nobel da matemática. E tornou-se o primeiro, desde a criação do prémio, em 1936, a recusá-lo. Agora, a história parece querer repetir-se na sequência da atribuição, pelo mesmo trabalho, do Prémio Milénio do Instituto de Matemática Clay (CMI), uma fundação privada com sede em Cambridge, Massachusetts, nos EUA.

Maravilhas da matemática

Aquele instituto elaborou, no ano 2000, a lista dos sete problemas matemáticos mais difíceis de sempre e ainda por resolver na entrada do novo milénio - as "sete maravilhas" da matemática, em suma -, e criou um prémio de um milhão de dólares (748 mil euros) para quem conseguisse resolver cada um deles. E justamente, o primeiro problema a "cair", logo em 2002 - a chamada conjectura de Poincaré (hoje velha de 106 anos) - foi resolvido por Perelman.

Mas Perelman não submeteu a sua demonstração para publicação a uma revista da especialidade, como é costume: publicou-a em três prestações no site arXiv.org, um repositório on-line de pré-publicações onde físicos e matemáticos expõem os seus resultados à avaliação dos seus colegas. Uma atitude considerada tão pouco ortodoxa como o seu autor e que, há oito anos, foi uma autêntica estreia na Internet vinda de um matemático reputado (que ele já era na altura). A demonstração por Perelman da conjectura, considerada muito sintética e elegante por quem a percebe, precisaria de vários anos de escrutínio cerrado até os matemáticos poderem concluir com certeza que não continha falhas.

No comunicado emitido no passado dia 18 de Março pelo CMI a anunciar o prémio, o seu presidente, James Carlson, afirmava que "a resolução da conjectura de Poincaré por Grigory Perelman (...) constitui um avanço fundamental na história da matemática, que ficará na memória durante muito tempo".

Mas quando telefonaram a Perelman para lhe anunciar a boa notícia, diz Carlson, citado pelo jornal The Independent, "ele respondeu que tinha de pensar nisso", recusando-se a dizer logo se aceitava o prémio. Os responsáveis do Clay Institute ainda têm esperanças, porém, de obter uma resposta final afirmativa e de conseguir que Perelman vá a Paris, no próximo mês de Junho, receber o galardão e celebrar o resultado.

A proeza de Perelman

O matemático francês Henri Poincaré enunciou a conjectura que tem o seu nome em 1904. Uma conjectura, diz o mesmo documento do CMI, que "é fundamental para conseguir perceber as formas tridimensionais". E nomeadamente, acrescente-se, a forma do Universo.

Mas uma conjectura é, antes de mais, uma proposição matemática que parece ser verdade, mas que se revela muito difícil de provar ou invalidar - e que portanto não pode ganhar, enquanto essa situação se mantém, o estatuto de teorema. E a conjectura de Poincaré resistiu de facto aos embates repetidos dos matemáticos mais aguerridos durante quase um século.

A conjectura de Poincaré tem a ver com uma área da matemática, a topologia, que estuda as propriedades estruturais que certos objectos conservam mesmo quando sofrem deformações extremas mas "contínuas" (ou seja, que não os rasguem nem os furem) - quando sofrem um morphing, para utilizar uma palavra na moda. Por exemplo, para um especialista de topologia, uma bola de futebol, ou a pele de uma laranja, mesmo espalmadas, esticadas, espezinhadas, serão sempre uma esfera (uma superfície cujos pontos se encontram todos à mesma distância do centro). Isto porque, desde que tenha conservado a sua integridade, essa forma tão disforme, irreconhecível, poderá sempre recuperar a sua redondez original através de deformações graduais, contínuas - no caso da bola, por exemplo, bastaria para isso enchê-la com ar devagarinho, cuidadosamente. Já um pneu (ou um donut) nunca se poderá transformar numa esfera por este tipo de procedimento porque tem um buraco no centro - o que o torna radicalmente diferente, do ponto de vista topológico.

Os matemáticos explicam muitas vezes as suas ideias com imagens que para os leigos podem parecer estranhas. Mas, de facto, uma maneira simples de perceber (e demonstrar) que um objecto é uma esfera consiste em imaginar um elástico esticado em redor do objecto. Seja qual for a posição inicial do elástico, se o objecto for topologicamente igual a uma esfera, ao deslizar o elástico sem permitir que deixe de estar em contacto com a superfície do objecto, o elástico poderá sempre ser encolhido até ficar "reduzido a um ponto" e retirado sem danificar a superfície. Pelo contrário, o mesmo nunca poderá acontecer com um elástico colocado à volta de um pneu (ou um de donut) que passe pelo buraco central. Para o "reduzir a um ponto" e o retirar, será sempre preciso rasgar o pneu (ou o donut). Superfícies cuja integridade nunca sofre com o encolhimento do elástico, como a bola de futebol (mas não o donut) são qualificadas de "simplesmente conexas".
(...)
http://jornal.publico.pt/noticia/12-04-2010/grigory--perelman--esta-cansado--da-matematica--e-dos-matematicos-19140599.htm