domingo, 28 de junho de 2009

O QUE é a ESTÉTICA?

Dicionário Escolar de Filosofia, org. por Aires Almeida (Lisboa: Plátano Ed)

Uma das disciplinas tradicionais da filosofia, que aborda um conjunto de problemas e conceitos por vezes muito diferentes entre si. A estética começou por ser sobretudo uma teoria do belo, depois passou a ser entendida como teoria do gosto e nos nossos dias é predominantemente identificada com a filosofia da arte. Há fortes razões para considerar que estas três formas de encarar a estética não são apenas diferentes maneiras de abordar os mesmos problemas. É certo que gostamos de coisas belas que também são arte, mas não deixa de ser verdade que as coisas que consideramos belas, aquelas de que gostamos e as que são arte, formam conjuntos distintos. Afinal, até é banal gostarmos de coisas que não são belas e muito menos arte; assim como podemos nomear obras de arte de que não gostamos nem consideramos belas.
Enquanto teoria do belo, a estética defronta-se com problemas como "O que é o belo?" e "Como chegamos a saber o que é o belo?". Estas são perguntas que já Platão colocava no séc. IV a.C. e que só indirectamente diziam respeito à arte, pois a arte consistia, para ele, na imitação das coisas belas. Razão pela qual Platão tinha uma opinião desfavorável à arte, ao contrário do seu contemporâneo Aristóteles, para quem a imitação de coisas belas tinha os seus próprios méritos.
Já para os filósofos do séc. XVIII, como Hume e Kant, é no campo da subjectividade que se encontra a resposta para o problema do belo. A estética transformou-se, assim, em teoria do gosto, cujo problema central passou a ser o de saber como justificamos os nossos gostos. O subjectivismo estético é a doutrina defendida por estes dois filósofos, embora com tonalidades diferentes. A doutrina rival é o objectivismo estético e é bem representado pelo filósofo americano contemporâneo Monroe Beardsley (1915–85), para quem o belo não depende dos gostos pessoais, mas da existência de certas características nas próprias coisas.
Finalmente, as revoluções artísticas dos dois últimos séculos, ao alargar de tal modo o universo de objectos que passaram a ser catalogados como arte, acabaram por despertar nos filósofos vários problemas que se tornaram o centro das disputas estéticas. É o caso dos problemas de filosofia da arte como "O que é arte?" e "Qual o valor da arte?", entre outros.
Dicionário Escolar de Filosofia, org. por Aires Almeida (Lisboa: Plátano, 2003

O GOSTO

Kant, Crítica da faculdade do Juízo

“O primeiro lugar-comum do gosto está contido na proposição com a qual cada pessoa sem gosto pensa precaver-se contra a censura: cada um tem o seu próprio gosto. Isto equivale a dizer que o princípio determinante deste juízo é simplesmente subjectivo (deleite ou dor) e que o juízo não tem nenhum direito ao necessário assentimento dos outros.
O segundo lugar-comum do gosto, que também é usado até por aqueles que concedem ao juízo de gosto o direito de expressar-se validamente por qualquer um, e: não se pode disputar sobre o gosto. O que equivale a dizer que o princípio determinante de um juízo de gosto na verdade pode ser também objectivo, mas que ele não se deixa conduzir a conceitos determinados; por conseguinte, que nada pode ser decidido sobre o próprio juízo através de provas, conquanto se possa perfeitamente e com direito discutir a esse respeito. (…) Vê-se facilmente que entre estes dois lugares-comuns falta uma proposição (…): pode-se discutir sobre o gosto (embora não disputar). Esta proposição contém porém o oposto da primeira. Pois sobre o que deva ser permitido discutir tem que haver esperança de chegar a um acordo entre as partes; por conseguinte, tem que se poder contar com fundamentos do juízo que não tenham validade simplesmente privada e portanto não sejam simplesmente subjectivos, ao que se contrapõe precisamente aquela proposição fundamental: cada um tem o seu próprio gosto.”

Kant, Crítica da faculdade do Juízo, §56

Da necessidade da argumentação

Isaque Manuel Nunes Tomé

2. A necessidade da argumentação
2.1. Razões e propósito da argumentação
Sendo certo que a lógica formal trata da validade do argumento, não trata de saber se a verdade suposta nas premissas é real ou se a verdade diz respeito a esta ou aquela teoria da verdade. Ou seja, se num raciocínio dedutivo supondo a verdade das premissas garantimos a verdade da conclusão, tal não implica a real verdade das premissas. Assim, quando a lógica formal afirma que a verdade é necessária para estabelecer a validade do próprio argumento, a verdade é uma verdade suposta. À lógica não interessa a questão da verdade, em si, das proposições – veja-se o anexo que mostra o raciocínio dedutivo a partir de premissas falsas, ou pelo menos discutíveis.
Existem domínios em que a verdade das proposições é de difícil estabelecimento, não é consensual, ou é até impossível de atingir, dada as características das proposições que remetem para modos de vida e cosmovisões.
A argumentação ocorre quando o conhecimento não é do domínio do absoluto e do verdadeiro. Ocorre quando existe incerteza, dúvida, prós e contras determinada tese. Ocorre sobretudo quando toca o domínio das decisões humanas que remetem para visões do mundo particulares, hierarquias de valores variáveis. Nas palavras de Olivier Reboul a argumentação “não se exerce senão nas situações de incerteza e de conflito, onde a verdade não está dada e não será atingida senão sob a forma do verosímil”.
Pelo contrário, numa demonstração dedutiva os axiomas não estão em discussão; sejam eles considerados como evidentes, como verdadeiros ou como simples hipóteses, não há qualquer preocupação em saber se eles são, ou não, aceites pelo auditório.

Pelo já dito, infere-se que há duas dimensões que escapam à validade e à lógica formal, 1.ª, a aceitabilidade da conclusão nos raciocínios não dedutivos e, 2.ª, a dimensão do conteúdo ou matéria das proposições.
A lógica informal procura, assim, dar conta destas duas dimensões onde
a) o ponto de partida são proposições discutíveis, onde existe incerteza e a aceitação do ponto de partida é a aceitação da proposição pelo valor que lhe é reconhecida (verdade ou qualquer outro);
b) as razões apresentadas para conduzir à aceitação desse ponto de partida não são constringentes – podendo o auditório não aceitar o ponto de partida mesmo aceitando o argumento.

Basicamente existe argumentação porque é preciso convencer alguém da verdade ou da razoabilidade de uma proposição, de tal maneira a que a ela adira. A argumentação ocorre no domínio do humano, no domínio em que os valores e as hierarquias axiológicas interferem nas decisões, no mundo em que a verdade de uma proposição pode não ser razão ou condição suficiente para que a ela se adira. Em última instância a argumentação visa a adesão do auditório. Convém não esquecer que os grandes problemas da decisão política, económica, social e ética dos homens e da humanidade concentram a sua resolução neste tipo de lógica.

Assim, enquanto a lógica formal pode ser garantir a validade e suportar uma verdade da conclusão, a lógica informal ajuda-nos num contexto mais complexo – porque ambíguo e variável em função das subjectividades em jogo – num contexto em que a verdade é um critério entre outros e onde o próprio critério de verdade está, muitas vezes, em discussão. A argumentação ocorre no domínio em que o homem deixa a verdade intersubjectivamente reconhecida e deixa o domínio de culturas fechadas que estabelecem uma tabela de valores e uma matriz de decisão simples e universal - o que ocorre em sociedades fechadas. Pelo contrário a sociedade em que vivemos é aberta, complexa, diversa e com tabelas de valores, referentes variáveis, processos de escolha complexos e múltiplos, daí a necessidade de ultrapassar a indecisão e a subjectividade, possível pelo espaço discursivo argumentativo.

2.2. A verdade, um entre muitos critérios de adesão
A adesão, tal como concebida por Perelman, é uma tarefa a desenvolver no auditório porque a verdade, como valor de verdade, a existir na proposição, é um critério que pode não ser suficiente para que o sujeito a ele adira. A adesão no domínio argumentativo não é uma mera adesão à verdade como no domínio meramente gnoseológico.
As razões para admitir ou rejeitar uma tese podem ser diversas. A verdade ou falsidade desta constituem unicamente um motivo de adesão ou de rejeição no meio de tantos outros: uma tese pode ser admitida ou afastada porque é ou não oportuna, socialmente útil, justa e equilibrada. Dito de outra forma, o auditório avalia as teses do orador tendo em conta diversos critérios. É neste sentido que falamos de pluralidade de critérios: os vários auditórios consoante o seu contexto têm diferentes critérios valorativos, e dentro de um mesmo auditório as pessoas que o compõem podem ter pontos de vista e escalas valorativas diferentes.

2.3. A adaptação do discurso ao auditório
Por esta razão, o orador, antes de iniciar o seu discurso, deve ter do seu auditório uma ideia tanto quanto possível próxima da realidade, uma vez que um erro sobre este ponto pode ser fatal para o efeito que ele quer produzir; é em função do auditório que toda a argumentação se deve organizar, se esta quiser ser eficaz. Assim é indispensável ao orador conhecer o auditório sobre o qual quer exercer a acção. O orador que queira agir eficazmente pelo seu discurso deve adaptar-se ao seu auditório. Em que consiste esta adaptação? Essencialmente, em o orador só poder escolher, como ponto de partida do seu raciocínio, teses admitidas por aqueles a que se dirige.
Ou seja, a contingência e a verosimilitude dos conhecimentos e teses defendidos na argumentação, bem como o facto desta se desenvolver num contexto particular e num domínio pessoal (onde têm influência as características individuais do orador e as características do auditório), faz com que o orador tenha de adaptar o seu discurso ao auditório (ás suas características intelectuais, socioprofissionais e culturais e outras). A adaptação da argumentação ao auditório visa não só que os argumentos sejam entendíveis, mas sobretudo que “joguem” (vão ao encontro) dos critérios valorativos do auditório, de forma a que se estabeleça uma ponte comunicacional e se facilite o acordo prévio (teses ou pontos de partida sobre os quais todos estão de acordo e que possibilita o diálogo e o confronto argumnetativo).
Com efeito, a finalidade da argumentação é transferir para as conclusões a adesão que é concedida às premissas. O orador só poderá partir de premissas que beneficiem de uma adesão suficiente: se esta adesão não for forte, a primeira preocupação daquele que quer persuadir deve ser a de a reforçar por todos os meios. Adaptar-se ao auditório é, sobretudo, escolher como premissas da argumentação as teses admitidas por este último.
É também de referir que o auditório tem legitimidade de contestação e tem o poder de utilizar a sua capacidade critica, assegurando uma relação horizontal entre orador e auditório. Ambos têm legitimidade e a ambos é reconhecida competência. Por ultimo deve atender-se que a argumentação se desenrola numa língua natural cuja ambiguidade não se encontra previamente excluída.

3. A necessidade da lógica informal
Em face da necessidade de usarmos a argumentação e em virtude desta ir além da dimensão formal e dedutiva dos argumentos – patente na demonstração, bem como pela natureza pouco circunscrita dos argumentos indutivos, é necessário conhecer e legitimar essa tipologia de argumentos não dedutivos. Aliás, o mundo actual, onde a comunicação impera sobre a mensagem, onde o oral se sobrepõe ao escrito e onde a imagem se sobrepõe à palavra, a argumentação se faz por gestos, subentendidos, e com grande suporte visual, quer nos casos de decisão com alcance pessoal - como é o caso da publicidade, quer na decisão com alcance colectivo – o domínio da propaganda, é imperativo práxico e político que na formação do cidadão esteja o conhecimento dos mecanismos de argumentação falaciosa.
A teoria da argumentação, designadamente a de Perelman , que abrange uma lógica informal, estuda:
a) as condições de aceitabilidade de uma argumentação, estuda as condições que tornam um discurso argumentativo um discurso convincente ou persuasivo.
b) os erros de raciocínio que tornam um argumento incorrecto ou inválido do ponto de vista da lógica informal: as falácias informais.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Filosofia: ensinar para a liberdade


UNESCO Study “Philosophy: A School of Freedom”



News 5 of 16
UNESCO publishes “Philosophy: A School of Freedom. Teaching philosophy and learning to philosophize: Status and prospects” - an innovative publication based on the results of a worldwide study and abounding with unprecedented recommendations and proposals on the teaching of philosophy.

Discovering the wonder of children when they face questions aroused by their encounter with reflective thought is the purpose of the first chapter of this publication. It offers a glimpse into an entirely new field of teaching: introducing philosophy at the pre-school and primary levels. Readers will discover the full significance of giving children both the opportunity and the space to tackle questions of a philosophical nature, including metaphysical ones, to which science cannot find answers. This aspiration urges us to reflect more profoundly on education, on learning, as well as on the role of teachers.

Encountering philosophy during adolescence proves to be such an important point in the memory of one’s educational career! Chapter II reveals the multiple facets of what the imprint left will be, a genuine creative potential. Readers will sense the pedagogical force of philosophy teaching at this turning point in people’s lives, when one’s personality seeks to construct itself. Teenagers who question, often opposing in order better to affirm themselves, this is the pattern of the evolution – revolution that the publication proposes to grasp with all its underlying paradoxes and contradictions.

Describing the vast field of philosophical reflection at university is the ambition of Chapter III. It grapples with all the complexity of philosophy teaching with its many facets and ramifications, as well as the variety of its intrinsic links with the defense of academic freedoms and of freedom of expression.

Drawing upon philosophy’s infinite resources is the aspiration of Chapter IV, by spelling out all the richness of alternative ways of philosophizing: other places, other needs, other responses…. These pages will not fail to surprise readers by the unexpectedness of the practices they describe, and also by the originality of twenty suggestions that call upon each and every one’s imagination and will to become involved.

Exploring the extent of philosophy through figures, quotes, graphics and statistics on the basis of the results of UNESCO’s questionnaire – this is what Chapter V is designed to do. In its way, it makes its contribution to reflecting the flourishing picture of philosophy.

Download the publication [PDF].

For more information, please contact the Human Sciences Section of Philosophy (UNESCO) at:
Tel.: +33 (01) 45 68 45 52
Fax: +33 (0) 1 45 68 57 29
E-mail: philosophy&human-sciences@unesco.org.

Related Links:

Download the publication in French [PDF]

Philosophy at UNESCO

quarta-feira, 17 de junho de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

A importância do Espaço Público

FILOSOFIA NA CIDADE
A importância do Espaço Público numa Sociedade Democrática

Mafalda Koppensteiner

O homem é, por natureza, um animal político como o dizia o filósofo Aristóteles. Uma vez integrados numa sociedade, somos levados a participar nela, pensando no nosso papel como cidadãos e desenvolvendo uma atitude crítica sobre o que nos rodeia. Sendo seres dotados de razão, somos capazes de pensar por nós próprios e elaborar ideias que podem ser dialogadas no seio da nossa sociedade. Assim surge o espaço público que, de um modo geral, pode ser entendido como um local onde pessoas se reunem com o objectivo de criar uma opinião pública, um lugar ao qual qualquer cidadão pode aceder.
Na grécia Antiga apareceu a distinção entre o que era privado e o que era público, mas aqui o conceito de espaço público ainda não aparecera. Os cidadãos econtravam-se num local onde discutiam assuntos políticos, mas isto era restrito a um parte da população, já que as mulheres, escravos e estrangeiros não podiam participar. A génese do espaço público remete-se então para a idade moderna, aparecendo com muita força no século XVIII, pois é nesta época que se reúnem as conjunturas para a formação deste espaço e onde são respeitadas algumas condições. Sendo um espaço onde se gera um fluxo de ideias e que valoriza a liberdade individual, está, portanto, ligado à democracia.
Numa sociedade democrática os cidadãos são encarados como iguais perante a lei e são chamados, convidados a participar nas decisões dos interesses comuns. Sendo assim é fácil de perceber que o espaço público não nasceu antes da democracia, mas apresenta-se sim como uma consequência deste sistema político. É graças à liberdade de expressão que existem ideias diferentes que geram debates acesos, cuja úncia arma possível de ser utilizada é a argumentação. Existiria, pois, espaço público num regime autoritário? Certamente que não, ou se existisse seria controlado, uma vez que o cidadão não fala do que pensa, mas canta o que lhe mandam. Assim, umas das características do espaço público é permitir ao indivíduo pensar por si próprio, racionalizar já que é livre de usar a palavra de uma forma autónoma. São então nas suas características que reside a sua importância numa sociedade como a nossa.
Do meu ponto de vista, o espaço público contribui para a evolução das sociedades, pois é com o aparecimento de diversas ideias que se desenvolve a racionalidade do homem. Se nos voltarmos para os tempos de ditadura em que não há a liberdade de expressão, apercebemo-nos que as ideias existentes seguem uma úncia linha de pensamento, incutida pelo regime autoritário. Não há pois inovação noutros campos, mas sim uma estagnação, ficando as ideias adormecidas na mente e não podendo acordar pela inexistência do espaço público. E são essas ideias que são necessárias para a construção de uma sociedade melhor, já que quando pensamos numa esfera pública pensamos (em princípio), no que é melhor para todos.
O espaço público impede, pois, que as decisões de uma sociedade se façam por um só indivíduo, que assume o poder total e que decide sem ter em conta a opinião dos restantes. Daí que este espaço apenas exista numa democracia em que estão presentes as eleições e o direito ao voto. O indivíduo pode assim eleger um partido que lhe pareça o mais correcto para a concretização de uma sociedade melhor. O direito ao voto permite, então, que se ouçam as vozes do espaço público.
Em jeito de conclusão, aponto mais uma característica que torna o espaço público tão importante: ao pensarmos no melhor para a nossa sociedade, ao desenvolvermos uma atitude crítica, participamos activamente, e inserimo-nos em algo. Assim, na minha opinião, a existência do espaço público alimenta-nos racionalmente e alarga-nos os horizontes.
Já que somos animais políticos não seriamos indivíduos realizados sem o espaço público.

domingo, 14 de junho de 2009

Livros para Férias - 1

POLÍTICA PARA UM JOVEM - de Fernando Savater, Filósofo e Professor Espanhol

Uma iniciação à Política - conceitos básicos, pensamentos sustentados

Política para um Jovem

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Do PÚBLICO ... Cientistas portugueses invalidam um dos dogmas da biologia

04.06.2009 - 21h28 Ana Gerschenfeld

Há 270 milhões de anos, uns bocadinhos do património genético de diminutos fungos, que até lá não tinham nada de particular, começaram a sofrer uma mudança de identidade. Normalmente, os fungos, do género Candida – não deveriam ter sobrevivido a tal alteração genética – mas sobreviveram, ao ponto que são hoje os principais responsáveis pelas infecções fúngicas nos seres humanos. Como é que foi possível? A sequenciação dos genomas de uma série de espécies deste fungo permitiu agora explicar este aparente paradoxo.

O genoma dos seres vivos é uma grande molécula, feita do encadeamento de quatro moléculas de base, a que chamamos “letras” para respeitar a metáfora segundo a qual o genoma contém as “instruções” para a construção de cada tipo de organismo. Grosso modo, cada “palavra” de três letras consecutivas, ou “codão”, codifica um dos 20 aminoácidos, os tijolos de construção que as células vivas utilizam para fabricar as suas proteínas, componentes essenciais dos tecidos biológicos. Aminoácidos esses que o organismo vai buscar às proteínas animais contidas nos alimentos.

Desde a descoberta dos codões, há uns 50 anos atrás, pensava-se que essa correspondência codão-aminoácido – o chamado “código genético” – era comum a todos os organismos vivos, universal. O argumento era que, uma vez o código genético fixado, de uma vez por todas, nos primórdios da evolução das espécies, já não podia ser alterado sem consequências funestas para o organismo afectado.

No fim da década de 80, porém, Manuel Santos e a sua equipa da Universidade de Aveiro foram dos primeiros grupos do mundo a propor que isso não era bem assim: descobriram que as Candida conseguiram sobreviver apesar de ter sofrido uma alteração do seu código genético que deveria ter sido perfeitamente tóxica. Num trabalho hoje publicado em consórcio internacional na revista “Nature”, explicam pela primeira vez, graças à análise comparativa dos genomas de várias espécies diferentes de Candida, como é que essa “mudança de identidade” teve concretamente lugar.

“O nosso resultado tem implicações tremendas do ponto de vista biológico”, disse-nos em conversa telefónica Manuel Santos. “Significa que o código genético não é universal. Já tínhamos descoberto essas alterações há uns anos, mas com este estudo conseguimos perceber como é que essa evolução aconteceu.”

Basicamente, nas Candida, o codão que inicialmente mandava colocar no sítio correspondente da proteína em construção um aminoácido chamado leucina, passou a comandar a colocação de um outro aminoácido, a serina. E esta alteração do código genético “deveria ter sido letal”, repete Manuel Santos.

Mas esse codão não mudou repentinamente de identidade; pelo contrário, fê-lo muito gradualmente, ao longo de milhões de anos. “Há 270 milhões de anos, esse codão começou a mudar e adquiriu duas identidades diferentes”, diz ainda Manuel Santos. A maior parte das vezes, continuava a comandar a colocação de leucina, mas de vez em quando colocava serina. A seguir – e é este o segredo do sucesso da operação –, “durante 100 milhões de anos, esse codão desapareceu praticamente do genoma dos fungos. E quando reemergiu, com a sua segunda identidade, foi em posições onde já não era tóxico para os genes”. Um belo truque evolutivo.

Para que é que serve este tipo de alteração ao código genético? “Não sabemos”, responde-nos Manuel Santos. Mas acrescenta logo: “Estes fungos têm uma enorme necessidade de contornar o sistema imunitário humano. Uma possibilidade é que esta alteração do código genético seja um mecanismo compensatório destinado a aumentar a diversidade genética das Candida, que só muito raramente se reproduzem de forma sexuada”. Os organismos que apenas se reproduzem de forma assexuada formam colónias de clones, geneticamente idênticos – e portanto, têm dificuldade em resistir aos ataques do sistema imunitário dos seus hospedeiros.

Um outro dos aspectos agora esclarecidos por este trabalho prende-se precisamente com a reprodução destes fungos. “Há décadas que a reprodução sexuada dos fungos era objecto de intenso debate”, frisa Manuel Santos. “Pensava-se que não havia reprodução sexuada nestes organismos. Mas ela é importante para gerar diversidade genética. Agora, a sequenciação dos genomas de Candida clarificou definitivamente esta questão: algumas espécies possuem genes de reprodução sexuada e outras não. Contudo, naquelas que apresentam uma reprodução sexuada, ela só acontece muito raramente, sendo normalmente assexuada” – isto é, por fissão celular.

Do lado da medicina: perceber de onde vem o perigo

Normalmente, as candidíases manifestam-se como lesões cutâneas e podem ser facilmente tratadas com medicamentos antifúngicos. Mas, em caso de deficiência imunitária, podem ser letais, espalhando-se para o fígado, os pulmões, o cérebro. Põem em risco bebés prematuros, doentes transplantados, pessoas com HIV. E algumas espécies estão a tornar-se resistentes.

O que faz com que uma espécie de Candida seja patogénica e outra inócua? Este é um dos aspectos ainda pouco claros. Mas os resultados hoje publicados permitem começar a desvendar o mistério. “A sequenciação dos genomas e a sua comparação mostrou que as espécies patogénicas possuem um conjunto de genes envolvidos na patogénese” diz Manuel Santos, que liderou a participação portuguesa no trabalho.

Mais precisamente, o seu genoma contém um maior número de cópias de uma série de genes que codificam o fabrico de proteínas, chamadas adesinas, que comandam a síntese de proteínas da parede celular destes fungos. “São elas que interagem com as células humanas”, frisa Manuel Santos, “e isso é importante para a adaptação do fungo ao sistema imunitário do hospedeiro”, adaptação que condiciona a manutenção da infecção. “Este resultado é muito importante porque pode permitir desenvolver novos antifúngicos”, conclui.